terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sobre "La Vie d'Adèle" ou Azul é a cor mais quente

Fora o que se tem dito acerca da realização de “La Vie d’Adèle”, de Abdellatif Kechiche, filme vencedor de três Palmas de Ouro, em Cannes, além de ter chegado ao Brasil com o título de “Azul é a cor mais quente”, numa referência aos quadrinhos que lhe deram origem, é uma obra que dialoga de maneira muito particular com uma atitude bastante peculiar nos nossos dias. Muito particular porque, em muitas cenas, adota o olhar de uma observadora, que está perto, mas também distante do que vê. Ou seja, Adèle, assim como muitos de nós, não está completamente envolvida com o que vê. Mantém, em várias cenas, o estatuto de espectadora, porém curiosa com o que de certa forma pode dissolver limites entre ela e o que lhe é desconhecido como experiência de vida.  Mas, esse desconhecido lhe atrai como chave para novas experiências, num mundo que tem pressa e certeza acerca da fugacidade da vida. Tal perspectiva é deveras adotada nos dias de hoje, dias marcados por um comportamento de espectadores, por parte de mulheres e de homens, diante do adormecimento de atitudes mais participativas, mais engajadas no espaço público. Hoje, o intelectual cidadão, que pode ser resgatado na lembrança da figura de Sartre, por exemplo, está fora de moda. Mas (e ainda bem) estamos numa época de mudanças.
 Neste ano de 2013, pessoas foram às ruas em vários lugares do planeta. Até no Brasil ocorreram as já famosas jornadas de junho que se estenderam por quase o resto do ano inteiro. Em 2014, não deve ser diferente. E foi com surpresa que escutamos da boca de uma das personagens principais do filme uma frase de Sartre e um discurso que o ligava à liberdade e à busca e ao fortalecimento de condições de autenticidade. Fico feliz: o nome do autor de A Náusea e tantos outros livros volta às discussões pela luta pela liberdade.   
 Voltando ao filme, por meio do olhar, Adèle se espanta, mas se vê atraída por um mundo que ainda é visto como não padrão, não oficial, não costumeiro.  Ela, habitante desse mundo padrão, sente-se atraída por uma outra maneira de estar no mundo e por meio de suas novas experiências também adotamos o olhar de espectadores de um mundo que ainda não é corriqueiro (pelo menos oficialmente).
A aproximação entre Adèle – curiosamente, nome da personagem de um filme de Truffaut, baseado num livro de France Vernon Guille e no diário de Adèle H., filha de Victor Hugo -  e Emma – nome da personagem que dá título ao famoso romance de Flaubert – duas mulheres transgressoras - vai alterar de certa forma esse estado de coisas. Continuamos a assistir às cenas de sexo entre as duas. Contudo, passamos a torcer para que Adèle e Emma fiquem juntas, pois a intensidade desses encontros e a relação afetiva entre elas nos convence de que estamos diante do que chamamos de Amor, não importa o sexo das pessoas envolvidas. E a relação entre elas é tão intensa que passamos a dar um peso menor para aproximações que Adèle tem ou teve com homens e, possivelmente, com outras mulheres.
Poderíamos aqui entrar na discussão se tal filme dialoga com o erotismo ou com a pornografia, mas não vou entrar nesse assunto.  Teria que necessariamente me reportar a Georges Bataille e tal postagem ficaria demasiadamente extensa para um blog. Contudo, fica clara como água a força do sexo nas relações humanas e como ele é importante para a realização de homens e de mulheres como seres humanos.
Gostaria, contudo, de tocar, muito rapidamente, em três questões.
Uma delas diz respeito à presença da cor azul em várias cenas do filme como já era de se esperar dado o título adotado aqui no Brasil. Tal presença está identificada à liberdade. Fica então difícil não lembrar de um outro filme: “A liberdade é azul” (1993), de Krzysztsf Kieslowski, cujo título original é: “Trois couleurs: Bleu”. Trata-se de uma trilogia que trabalha, em cada um dos filmes, com uma das cores da bandeira francesa e as relacionava com o lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.[1] A liberdade estava relacionada à cor azul e, no filme de Abdellatif Kechiche, aparece nos cabelos tingidos de Emma, uma estudante de Belas-Artes, como uma das marcas de liberdade e de autenticidade. E a cor azul - a liberdade – vai invadindo aos poucos a vida de Adèle, a medida que ela vai se envolvendo com Emma, a ponto de aquela se vestir de um azul intenso no final do filme. Por outro lado, o gosto pela estabilidade e algumas das marcas de pertença ao mundo anteriormente vivido por Adèle vão invadindo a vida de Emma que, no correr do filme, tem os seus cabelos de volta à cor natural. Contudo, os olhos de Emma permanecem azuis, num indício de que ela se mantém livre.
  A outra questão é que, segundo pude perceber, no filme, as atitudes de Adèle e de Emma, no espaço doméstico, não fogem inteiramente a determinados padrões pré-estabelecidos. Isso é visto na relação de Adèle e Emma, também marcada por uma divisão de tarefas que se assemelha muito a de casais heterossexuais não progressistas nos dias de hoje. Essa seria uma marca de ambiguidade, mas a vida –como a arte – não conseguem escapar dela.
A terceira gira ao redor da insistência de Emma para que Adèle escreva, porém Adèle se sente feliz como professora, principalmente como professora de uma classe de alfabetização. E, em uma de suas aulas, a poesia está presente por meio da leitura feita por seus alunos de jogos de palavras com suas vozes infantis. Naquela cena, dá para sentir que a professora também trabalha com arte e, com seu trabalho, desperta novas pessoas para a arte, numa mensagem de valorização da profissão de professor.
Aqui no Brasil, esse filme, que fala de liberdade, de autenticidade, tem cenas de manifestações, cita Sartre, valoriza a profissão de professor, chega num ano em que as pessoas voltaram a protestar nas ruas, algumas claramente contra o sistema capitalista que aprisiona nossos corpos e nossas mentes.
Estamos vivendo um tempo de transformação. Um tempo que aponta para o quê? Não sabemos. Sabemos que alguma coisa mudou e que 2014 promete ser um ano de lutas e – gostaríamos – um ano de busca de ser para si e de ser para o outro.

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sobral ou Uma Flor Nasceu no Asfalto

Na semana passada, fui ao cinema, com minha filha de 11 anos, assistir a “Sobral: o homem que não tinha preço”, de Paula Fiuza.
A sala não estava cheia e algumas das pessoas que lá se encontravam teciam comentários sobre o respeitado advogado, hoje, um tanto esquecido pelo menos até o lançamento desse filme.
Na tela, vejo imagens do grande Comício que aconteceu no Rio, na Candelária, no início da década de 80 do ainda recente século passado. Imagens que foram filmadas do asfalto e também do alto trazem para os dias de hoje aquela cena e fazem com que ela volte a minha memória. De repente, a voz de Sobral ecoa: “Todo o poder emana do povo” e eu me lembro da emoção que senti quando, naquele dia de abril, com vinte e poucos anos, ouvi Sobral Pinto falar para uma multidão de um milhão de pessoas naquele lugar que transbordava sonhos de democracia.
Foram tempos de sonho, de luta, de esperança, mas também de uma das sucessivas crises financeiras do capitalismo. Contudo, havia a convicção de que o Brasil ia mudar e para melhor. Mas muita coisa permaneceu e nosso país ainda é um dos mais desiguais em termos de distribuição de riquezas na Terra.
A respeito de Sobral, minha filha pergunta: - Esse homem existiu?
Respondo: - Sim, existiu. E penso como foi que chegamos à situação em que nos desencontramos: uma atmosfera asfixiada pelo acirramento do capitalismo e das condições extremamente desfavoráveis para o pleno desenvolvimento dos seres humanos.
            O filme traz sim a sensação de que houve uma quebra que separou aqueles anos 80 dos dias de hoje. Anos em que um senhor da idade e do prestígio que tinha Sobral na altura não se intimidava de andar, pelas ruas do Rio, com simplicidade e simpatia.   
Lembro-me que pouco antes ou pouco depois daquele dia memorável, do Comício das Diretas no Rio, avistei, como de costume, Sobral Pinto andando pelas ruas do centro da cidade. Ele ia com um amigo e apesar da minha timidez, pedi um autógrafo ao grande advogado que atendeu ao meu pedido, mas antes perguntou se eu era aluna de Direito. Disse que não. Que era aluna de Letras da UFRJ.
Passados esses anos, vejo a sua imagem na tela do cinema.
         Sobral expressava a sua opinião com liberdade e colocava em prática o seu senso de justiça incomum. Senso de justiça que o fez defender pessoas que não pensavam como ele, atitude, aliás, raríssima hoje em dia.
        No filme, segundo crítica de Daniel Schenker, estampada em O Globo, “A falta de distanciamento talvez tenha levado a uma certa idealização”. Mas, a meu ver, não há falta de distanciamento e o ponto de vista adotado no filme, realizado por uma neta de Sobral, e até os depoimentos que lá estão presentes indicam ao espectador que a maior parte das pessoas que falam naquele filme foi afetada positivamente por Sobral Pinto. Contudo, o que torna esse documentário interessante e mesmo importante para quem deseja compreender melhor os dias de hoje, - e fiquei feliz por ter levado minha filha para assisti-lo - além é claro da rememoração da própria figura pública – e, por vezes, íntima - de Sobral, é que atualizando (trazendo) as imagens e sons de um passado recente, porém ainda pouco divulgado nos dias de hoje, nos ajuda a compreender e a estranhar situações bastante atuais, como as que manifestam o acirramento, em nossos dias, do que Guy Debord chamou de sociedade do espetáculo, por exemplo.  Além disso, são vários os períodos da história do Brasil evocados no filme e a maior parte deles – fica evidente na tela - foi marcada por ditadura, por autoritarismo, por injustiça, por exclusão.
              Hoje, quase quarenta anos depois do golpe de 64, temos a Comissão da Verdade e discussões sobre ela; uma maior (mas ainda não satisfatória) aproximação com países da América do Sul, e, lembrando os versos do Poeta, “uma flor nasceu no asfalto”, as passeatas voltaram às ruas do Rio (e de várias cidades do Brasil). Mas, para quem vê “Sobral – o homem que não tinha preço”, fica difícil não aproximar as Jornadas de Junho e de Julho daquelas um milhão de pessoas que aparecem na tela, por meio das imagens do Comício das Diretas, e de muitos dos que lutaram pela liberdade e pelos direitos humanos em nosso país.  
             
               
               


domingo, 13 de outubro de 2013

A Propósito do Discurso de Luiz Ruffato

Certa vez, José Saramago disse que escrevia porque não queria morrer. Com o tempo, mudou e passou a escrever para compreender o que é um ser humano.
Agora em outubro, mais precisamente no dia 8, o escritor Luiz Ruffato proferiu um discurso na abertura da Feira do Livro de Frankfurt, evento que teve o Brasil como país homenageado.  Nesse discurso, o autor de Eles eram muitos cavalos trouxe a público aspectos pouco nomeados e constantemente silenciados do dia a dia em solo brasileiro e da história do nosso país, um país onde, como disse Ruffato, “[...] o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora [...]”[1].
As palavras proferidas por Ruffato naquele discurso de abertura se irmanam com a visão de Literatura expressa por escritores como Lima Barreto, o criador de Isaias Caminha, por exemplo, e mais do que isso, tornam mais evidente que a Literatura não é feita apenas, como queriam e postulavam alguns, por meio do exercício do privilégio do significante sobre o significado e que o escritor tem algo a dizer, algo que vai muito além de um mero jogo de metalinguagem.
Filósofos como Sartre, hoje tão esquecidos em muitos dos meios acadêmicos brasileiros, na área de Letras, já atentavam para o papel do intelectual em países da periferia de um mundo quase todo dominado pela lógica do capital. Contudo, na atualidade, ainda é mantida a hegemonia de um conceito de Literatura muito ligado ao isolamento e ao distanciamento das palavras dos seres humanos e do mundo real, mundo esse transformado por alguns em quimera, em praticamente impossível de ser conhecido pela razão e pelos sentidos. Dizem alguns, parafraseando Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor”. Porém se esquecem dos versos que seguem aquele primeiro verso de “Autopsicografia”: “Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”.[2] Além disso, os mesmos corifeus de uma Literatura desligada do mundo, defendem que esse tipo de Literatura é a Literatura na sua totalidade, que não existe Literatura além disso. Ou seja, tomam uma parte pelo todo.
 Há muitas formas de Literatura, assim como há muitos tipos de escritores e de escritoras, alguns se mantêm em silêncio sobre a conjuntura atual, mesmo tendo acesso aos meios de comunicação mais tradicionais, aliás, meios esses bastante fechados no Brasil. Outros, tomam a decisão de falar e consideram, assim como Ruffato, escrever um compromisso.
Dizia Isaias Caminha, citando Taine, na “Breve Notícia” que abre as suas Recordações: “[...] a obra d’arte tem por fim dizer aquilo que os simples fatos não dizem”.[3]
O que alimenta a Literatura? O que dá vida às palavras?
Podemos dizer: a própria vida que é movimento constante e constante transformação. Mas a vida não está livre e imune das condições materiais de existências dos seres vivos sobre a Terra. Não. Não está. E tais condições são também matéria da Literatura, mas não toda a Literatura, que abraça muitas formas de fazer e de construir textos e seus autores e suas autoras não se dividem entre escritores e escreventes, como consta em livros vindos de longe, cultuados ainda hoje no Brasil, pelo simples fato de optarem por um papel ativo, revolucionário na transformação do mundo.
Um escritor não é menor por querer compreender o que é um ser humano, por considerar escrever um compromisso. Saramago e Ruffato são bons exemplos desses tipos de escritores.
Está na hora de a nossa crítica literária e de as nossas Universidades se abrirem verdadeiramente ao diálogo entre diferentes correntes teóricas e práticas literárias, sem que haja o esquecimento daqueles, daquelas e daquilo que lhes seja diferente e mesmo antagônico.
O inferno pode ser os outros, mas eles também são a nossa salvação[4].  
  

  
  




[3] In: LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Rio de Janeiro: A. de Azevedo, & Costa, 1917, p. XI.
   Realizamos uma transcrição crítica atualizada da frase que citamos. Mantivemos o apóstrofe por uma questão de musicalidade do texto,
[4] Referência a uma famosa frase de Sartre: “O inferno são os outros”. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO

AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO[1]
                                                    

Estou aqui hoje porque acredito que não podemos continuar como muitos de nós estavam: vivendo como mortos-vivos nas cidades comandadas pela lógica do capital que não leva em conta a humanidade que somos todos nós.
Somos, cada um de nós, mortais e não podemos acreditar que as utopias morreram, que elas são fantasias, que não podem ser transformadas em realidade. Não. Elas são sonhos e sonhos não envelhecem, alimentam as transformações do mundo e os sonhos “aguardam secretamente o despertar”[2].
Em junho, vimos que o Brasil, como outros países do mundo, despertou.
Mas, é uma parte do Brasil e do mundo que despertou. Outras partes permanecem anestesiadas pela mídia (e não só por ela) e pelo cotidiano que adestra envelhecendo a juventude que habita cada um de nós.
De alguma forma, os que acordaram estavam acumulando forças, saberes, conhecimento para aquele momento e para outros que virão.
Alguns nunca dormiram. Estavam em movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e mesmo em suas casas, educando seus filhos e suas filhas, não cansavam de criticar os horrores e os crimes dos agentes do capitalismo. Muitos desses pais e dessas mães estavam nas passeatas dos anos 80, por exemplo, e tinham um sonho – e foram para as ruas por causa dele – de um Brasil e de um mundo melhor, mais justo, mais livre, mais democrático, com mais igualdade para todos.
Alguns militavam também por meio da arte. Disse uma parte da mídia com ironia: “Tantas pessoas nas ruas? Ora! Foi a classe média que veio para as ruas”. Sabemos que não foi apenas a classe média que veio para as ruas, mas alguns dessa classe e não só, possivelmente, foram influenciados por pelo menos dois filmes que estavam em cartaz (um deles ainda está): Os Miseráveis, baseado em romance homônimo de autoria de Victor Hugo e Depois de Maio (esse ainda está em cartaz), de Olivier Assayas, e por um filme que esteve nas telas, na primeira década deste século, V de Vingança, baseado numa série em quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd.
Nesses filmes, pessoas acreditam e lutam e vão para as ruas lutar por um mundo melhor. Dá para sentir a liberdade que brota dessas ações e desse querer. Uma liberdade muito distante daquela cantada e decantada pelo neoliberalismo: a liberdade do “livre” comércio, do comprar e do vender.
V de Vingança (não de vender) – além de dialogar com o Anarquismo, fortalecido no início desse século e que tem papel relevante na convocação e na mobilização das manifestações de junho – dialoga com uma ideia de Walter Benjamim, traduzida pelas seguintes palavras de Leandro Konder: [...] a revolução, por sua própria radicalidade, só pode se concretizar se puder contar com energias provenientes da redenção simbólica dos lutadores do passado, que poderiam fortalecer nossa débil “carga messiânica”[3]. Por meio dessas palavras (e de sua prática), dialogo com Eça, com Antero, com os que participaram das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, com Machado de Assis, com Lima Barreto, com Sartre, com Simone de Beauvoir e com todos os que lutaram e foram para as ruas por um mundo melhor.
 Queremos um mundo melhor. No intuito de realizar esse desejo, muitos de nós votaram no PT e o que ocorreu?
O PT continuou e em muitas frentes aprofundou a política empreendida pelo PSDB.
Será que há alternância de poder no Brasil?  Justiça, igualdade e democracia plena, sabemos que não.
A Universidade - que chamados de pública - é pública porque é mantida com dinheiro público e não pagamos diretamente por seus serviços. Contudo, todos têm acesso a ela? Podem, todas e todos aqueles que querem estudar, frequentá-la como alunas e alunos regulares e oficiais?
  Sabemos que não e o acesso é negado a essas pessoas assim que elas nascem. Temos, portanto, que ampliar o sentido de público nas Universidades.
  A República, de Platão, texto que fala, entre outros temas, sobre o governo da cidade, tem início com uma indagação sobre a Justiça.
A justiça que nos falta hoje e desde o dia que habitantes do dito Velho Mundo chegaram nestas terras, trazendo espelhos, quinquilharias, à procura de ouro, muito ouro, para satisfazer sua sede mercantilista.
Pode o mais forte sempre dominar? É isto que queremos?
E o Contrato Social? E a construção das cidades, segundo alguns, tornadas realidade para amenizar ou mesmo excluir a seleção natural? Não. Nada disso adiantou. Lembramos com Voltaire que injustiça gera injustiça e parte significativa da agressividade que foi sufocada para que tivéssemos o que chamamos de civilização, que nos dá, segundo Freud, tanto mal-estar, foi usada contra o (conforme a ideologia dominante) diferente, contra aquele e contra aquela que não fazem parte da burguesia que transforma com seu discurso, com suas ações quase tudo e quase todos e todas em mercadoria.
Passaram-se anos, séculos, colônia, império, monarquia, república velha, nova e o Brasil nunca teve um governo para todos.
Não. Definitivamente, não foi por 20 centavos que fomos para as ruas. Queremos (e vamos lutar por isto) viver sem tempos mortos, num mundo em que: “No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos de classe, surge uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de todos”.[4]  





[1] Texto lido na abertura do Debate promovido no Instituto de Letras da UFF, no dia 10 de julho, sobre as Manifestações de Junho. O evento contou com a participação de Sonia Lucio (Professora da UFF e membro da ADUFF), Renato Consentino ( Comitê Rio Popular Rio Copa e Olimpíadas) e Iara Moura (Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social). O debate foi organizado por Rodrigo Octávio Cardoso e por mim e o texto aqui postado é de minha responsabilidade e de minha autoria.  
[2]  Palavras de Walter Benjamim citadas por Leandro Konder em:  KONDER, Leandro. Marx, Engels e a utopia. In: COUTINHO, Carlos Nelson et al. O Manifesto Comunista 150 Anos Depois: Karl Marx, Friedrich Engels. São Paulo: Contraponto/Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 72.
[3] KONDER, Leandro. Marx, Engels e a utopia. In: COUTINHO, Carlos Nelson et al. O Manifesto Comunista 150 Anos Depois: Karl Marx, Friedrich Engels. São Paulo: Contraponto/Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 72.
[4] MARX, Karl/ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: COUTINHO, Carlos Nelson et al. O Manifesto Comunista 150 Anos Depois: Karl Marx, Friedrich Engels. São Paulo: Contraponto/Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 29.

domingo, 2 de junho de 2013

Uma Viagem no Tempo e no Espaço ou Uma leitura de Visões e Revisões em Literatura Comparada, livro de Delia Cambeiro

Após um intervalo de quase três meses (que para mim pareceu uma eternidade), volto a escrever para os leitores de Crítica & Arte.
Mas o que foi que me levou a deixar de postar artigos neste blog tão querido por mim?
É que venho trabalhando na preparação de edições críticas e na escrita de um novo romance, além de dar e preparar aulas de Crítica Textual/Ecdótica I, orientar alunos e de cuidar do que chamam de vida pessoal, sem se darem conta de que o trabalho também é parte (e boa parte) da vida pessoal da maioria dos seres humanos.
Bem, chega de digressões. Vamos ao artigo que, neste caso, é uma resenha.
Li há pouco tempo o livro Visões e Revisões em Literatura Comparada, de Delia Cambreiro.
Delia Cambeiro é professora da UERJ e Visões e Revisões saiu pela H.P. Comunicação Editora, em 2010, com apoio da bolsa de pesquisa do Programa PROCIÊNCIA da Universidade do Estado do Rio de Janeiro dado à autora.
O livro conta com onze capítulos que levam os leitores a uma viagem no tempo e no espaço a bordo de estudos de Literatura Comparada sobre obras não muito divulgadas nos dias de hoje, pelo menos no Rio de Janeiro.
Abre o volume, o artigo “O desembarcadoiro poético de Reynaldo Valinho” em que a poesia desse autor dialoga com a Galiza, como era de se esperar, mas também com outras tradições literárias sem se esquecer da modernidade e da solidão da vida em cidades como o Rio de Janeiro. Tal poesia é valorizada por sua temática, inclusive próxima de nós, leitores, e por suas ricas experiências formais como é o caso de Canto em si, por exemplo.
Segue esse capítulo, os artigos “Um estudo comparado sobre Cantigas de Amigo na Literatura Italiana” e “San Francesco di Assisi e Jacopone da Todi: due manifestazioni del Sacrato nella Poesia Religiosa Italiana”, esse último escrito e publicado em italiano.
É interessante e importante ressaltar que a passagem de um capítulo para outro se dá de forma suave, tranquila, sem paradas bruscas e mesmo sobressaltos, pois os capítulos que formam Visões e Revisões são como que encadeados, lembrando a estrutura de cantigas medievais. Ou seja, apresentam por vezes sutis ligações entre eles, o que facilita a viagem de aprendizagem do leitor ao longo de suas páginas.
Há ainda os capítulos: “A permanência da tradição clássica na literatura italiana. A poesia de Ugo Foscolo.”; “Carlo Goldoni sem máscara. A Commedia dell’arte ao Teatro nuovo” ; “Os setecentos anos de Francesco Petrarca ou um rito de passagem poético”; “Dos confins das rias galegas às paisagens urbanas. Uma leitura da poesia de Reynaldo Valinho Alvarez”; “Máis alá! – a chamada iconoclasta da literatura galega”, todos eles de vivo interesse para o leitor, que, na maior parte dos casos, não tem muitas oportunidades de adentrar pelos amplos caminhos contidos nessas obras (e abertos por elas).  Contudo, os artigos que mais chamaram a minha atenção foram: “A chaga física no corpo da Idade Média. Reflexões sobre A história das minhas desgraças, de Pedro Abelardo”; “Caminhos de Eros sob a ótica da cristalização. Uma mirada sobre as figuras literárias de Heloísa, Mariana Alcoforado e Adèle Hugo” e “No ano Sciascia, uma reflexão sobre Ética e Justiça com as vozes de Iván Turgueniev e Susan Sontag”.
 Em “A chaga física no corpo da Idade Média. [...]”, a autora escreve sobre a paixão de Adelardo e Heloísa, contextualizando esse amor e os problemas enfrentados por seus protagonistas para vivenciá-lo, problemas esses que fizeram com que Adelardo renunciasse a esse amor e que, a pedido de Abelardo, Heloísa fosse para o convento. Délia chega a fazer referência à questão da autenticidade das cartas e à possibilidade de sua natureza ficcional, contudo, não são esses os assuntos principais desse artigo. E a figura de Heloísa emerge de suas páginas como a de uma mulher de grande coragem e bem a frente de seu tempo.
 Em “Caminhos de Eros [...]”, Delia nos fala sobre o tema da cristalização – presente no livro Do amor, de Stendhal, que ela toma como ponto de partida sobre o assunto - e sobre mulheres que viveram paixões arrebatadoras, mas não necessariamente correspondidas e felizes. Novamente, Heloísa emerge das páginas de Visões e Revisões, agora ao lado de Mariana Alcoforado e de Adèle Hugo.
Nesse artigo, o leitor chega a sentir a força dessas mulheres que foram fiéis ao que acreditavam e ao que sentiam.
Já em “No ano Sciascia [...]”, Délia nos aproxima da obra desse autor pouco divulgado no Brasil, mas que tem uma obra que dialoga com questões como justiça, lealdade, corrupção, além de a autora trazer à baila uma discussão sobre o papel do escritor na sociedade, não se esquecendo de citar o hoje um tanto esquecido Qu’est-ce que la littérature?, de Jean-Paul Sartre.

E da leitura de Visões e Revisões em Literatura Comparada fica também o espanto de que livros tão interessantes e plenos de potencialidade de fomentar o surgimento de novos leitores não sejam tão divulgados entre nós.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

thiago luna: "O mar e o rio de Jacó"


Somente a enorme dificuldade de divulgação de novos e de não tão novos talentos literários que há neste país pode justificar que o grande público ainda não conheça o nome de thiago luna

thiago luna, apesar do nome grafado em minúsculas,  é um dos mais talentosos escritores da nova geração de brasileiros que ainda teimam em publicar, apesar do pouco incentivo que há para a produção literária no Brasil.

Em sua nova novela, “O mar e o rio de Jacó”, thiago trabalha o formato que o texto ganha na página em branco e reproduz, por meio da formatação das negras letras na alva página, o fluxo das águas do mar para o rio. E há quem possa estranhar a direção do fluxo das águas nas páginas escritas por thiago, mas esse fluxo também é uma materialização da imagem das regras, dos limites com que temos que aprender a conviver para que possamos viver neste mundo tão desnaturalizado e para que possamos nos comunicar e fazer uso (e ler e escrever literatura) com a língua que herdamos de nossos pais e que nos é apresentada sem as devidas ressalvas de que somos nós, seus falantes, também quem a mantém viva e a faz viver em tudo o que falamos, pensamos, sentimos e colocamos por escrito, obedecendo e burlando suas normas, um espaço fixo, mas não tão fixo, a ponto de ser elástico e moldável ao mesmo tempo e pelos tempos que houver falantes e leitores da nossa língua portuguesa que também nos tem e que é parte integrante de nós mesmos.

Essa metamorfose da língua em ser (e do ser em língua) está também presente na história narrada em “O mar e o rio de Jacó” que dialoga com o Gênesis– mais especificamente com a criação da vida por Deus e a história de Adão e Eva– assim como com o Evangelho de  João e o belíssimo início: “No princípio era o Verbo [...]”, com o Banquete, de Platão; com o rio de Heráclito, com parte significativa da tradição literária que chegou até nós.

Sim. Nas páginas de “O mar e o rio de Jacó”, o fluxo das águas se mistura ao fluxo do pensamento, das sensações escritas e da tradição que acompanham as transformações do narrador que, como a água, não tem uma forma  fixa: é peixe, é monstro, é homem apaixonado admirado amando a mulher que, muitas vezes, parece ser mais forte do que ele. Ela: uma espécie de Eva, mas sem a carga da culpa original que à Eva é atribuída pela cultura na qual estamos imersos. E o amor entre o homem e a mulher é visto como se fosse o original, o primeiro – e por que original, sagrado - que de certa forma também sustenta o mundo, formado, a sua maior parte – assim como nossos corpos – de água. Contudo, num certo momento da narrativa, ocorre um corte ou o início de uma narrativa muito diferente da que até aquele momento flui nas páginas escritas por thiago. Tal narrativa, nessa passagem, sintomaticamente fala de uma cidade – uma metáfora da civilização? – mas, parece um sonho. Tem mesmo o efeito semelhante do provocado pela leitura de obras como O Castelo, de Kafka. Porém, tal efeito é atingido pela colagem ou sampler de (segundo o próprio thiago) “O Diário de Moscou”, de Walter Benjamin que é incorporado pelo texto de thiago (e reescrito por ele), que dialoga com a narrativa das origens da vida, das transformações por que passa o narrador, num tempo muito antigo e muito moderno de discursos que se mesclam (ensaio, ficção) e se modificam e se transformam como diz o narrador de “O mar e o rio de Jacó”: “nada é fixo nem imóvel no coração senão a própria correnteza”.

domingo, 20 de janeiro de 2013

CAMINHANDO CONTRA O VENTO


                   

 

Abro o jornal de hoje, dia do padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, e leio, na coluna de Caetano Veloso, “Lutas”.

Minha alma é tomada pela esperança de dias melhores em nosso país.

O artista, Caetano Veloso, se colocou onde o povo está e escreve contra a derrubada da Aldeia Maracanã, o prédio que abrigava o Museu do Índio.

Muito obrigada pela atitude, Caetano Veloso!

Você mantém o brilho nos olhos dos tempos de “Alegria, Alegria”, a juventude e trilha o caminho daqueles que podem falar e não se calam diante das injustiças!

 

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Sobre Discurso e Texto: Dimensão Simbólica e Cidadã do Português Brasileiro e Africano, de Edwaldo Cafezeiro


            Desejamos um 2013 de muita sintonia entre o que todos nós sentimos, pensamos e agimos, postando estas palavras sobre Discurso e Texto: Dimensão Simbólica e Cidadã do Português Brasileiro e Africano, de Edwaldo Cafezeiro (Rio de Janeiro: Achiamé, 2011).

Há muito que eu pretendia escrever sobre esse livro, mas as obrigações diárias afastaram-me temporariamente desse intento. Mas chegou a hora. Ainda bem!

           Seu autor, Edwaldo Cafezeiro, é Professor Emérito Titular de Língua Portuguesa da UFRJ e um dos grandes nomes dos Estudos sobre Língua Portuguesa, Crítica Textual e Estudos sobre Teatro. Sua personalidade indagadora, receptiva, porém crítica, sempre aberta ao diálogo, desperta e encoraja em seus alunos e em seus leitores a prática do questionamento construtivo. E o que chamo de questionamento construtivo é a difícil aprendizagem de pensar e de agir com nossas próprias cabeças. Em Cafezeiro, pensar e construir teorias, obras, história, língua, literaturas, VIDA e uma Universidade e um país mais justos, mais democráticos, mais humanos.

             Cafezeiro faz-nos recordar Sócrates e sua disposição para o diálogo e para a dialética. Discurso e Texto: dimensão simbólica e cidadã do português brasileiro e africano é um exemplo dessa disposição. Esse livro é construído por meio de diálogos. De diálogos entre uma área que vem crescendo muito na universidade brasileira na atualidade, Análise do Discurso, e a História da Língua Portuguesa, mas não só.

             Nesse livro de importante leitura para aqueles que desejam ter uma visão mais abrangente e profunda acerca das dimensões simbólicas da língua portuguesa e para aqueles que consideram ser o Professor, além de um erudito disposto a explicar e a ensinar (e a aprender), um intelectual comprometido em combater a alienação em que vivemos, a relevância que é dada, nas suas páginas, à dimensão cidadã da língua portuguesa, que dá vida e dá forma a pensamentos em vários continentes e em várias épocas, por vezes, surpreendentemente surpreende. Porém, nos surpreende no sentido de que nos desperta para a falta que tal dimensão faz em muitos dos livros que lemos sobre a nossa língua. Faz-nos pensar também nas dimensões espaciais e temporais da língua em que falamos, pensamos, sonhamos, vivemos, mas também nas línguas que foram silenciadas para que ela, a nossa língua, tivesse as dimensões que tem hoje. Chama a nossa atenção para línguas que conviveram e que convivem com a língua portuguesa em países, nações, corações, tempos e memórias. E nos aproxima, por meio de textos literários, retirados de páginas escritas por autores de várias nacionalidades, de Moçambique, de São Tomé e Príncipe, de Angola, de Cabo Verde, de Guiné-Bissau, de Portugal e do Brasil de várias épocas e de várias lutas travadas também por meio do uso do humor e da ironia. Aproxima os Estudos de Língua dos Estudos de Literatura. E se não bastasse isso, nos mostra que a dimensão cidadã está presente em tudo nesta vida por mais que nos digam que não.

      Discurso e Texto é um exemplo de exercício do diálogo, da experiência da maturidade de um intelectual que se mantém sempre jovem para ensinar, para aprender, para pensar um Brasil mais inclusivo, em que a profundidade e a erudição do pensamento não estão divorciadas da prática da construção de um mundo melhor.