Fora o que se tem dito acerca da realização de “La Vie d’Adèle”, de
Abdellatif Kechiche, filme vencedor de três Palmas de Ouro, em Cannes, além de
ter chegado ao Brasil com o título de “Azul é a cor mais quente”, numa
referência aos quadrinhos que lhe deram origem, é uma obra que dialoga de
maneira muito particular com uma atitude bastante peculiar nos nossos dias.
Muito particular porque, em muitas cenas, adota o olhar de uma observadora, que
está perto, mas também distante do que vê. Ou seja, Adèle, assim como muitos de
nós, não está completamente envolvida com o que vê. Mantém, em várias cenas, o
estatuto de espectadora, porém curiosa com o que de certa forma pode dissolver
limites entre ela e o que lhe é desconhecido como experiência de vida. Mas, esse desconhecido lhe atrai como chave
para novas experiências, num mundo que tem pressa e certeza acerca da
fugacidade da vida. Tal perspectiva é deveras adotada nos dias de hoje, dias
marcados por um comportamento de espectadores, por parte de mulheres e de
homens, diante do adormecimento de atitudes mais participativas, mais engajadas
no espaço público. Hoje, o intelectual cidadão, que pode ser resgatado na lembrança
da figura de Sartre, por exemplo, está fora de moda. Mas (e ainda bem) estamos
numa época de mudanças.
Neste ano de 2013, pessoas foram às ruas em vários
lugares do planeta. Até no Brasil ocorreram as já famosas jornadas de junho que
se estenderam por quase o resto do ano inteiro. Em 2014, não deve ser
diferente. E foi com surpresa que escutamos da boca de uma das personagens
principais do filme uma frase de Sartre e um discurso que o ligava à liberdade
e à busca e ao fortalecimento de condições de autenticidade. Fico feliz: o nome
do autor de A Náusea e tantos outros
livros volta às discussões pela luta pela liberdade.
Voltando ao filme, por meio do
olhar, Adèle se espanta, mas se vê atraída por um mundo que ainda é visto como não
padrão, não oficial, não costumeiro. Ela,
habitante desse mundo padrão, sente-se atraída por uma outra maneira de estar no mundo e por meio de suas novas experiências também adotamos o olhar de espectadores
de um mundo que ainda não é corriqueiro (pelo
menos oficialmente).
A aproximação entre Adèle – curiosamente, nome da personagem de um filme
de Truffaut, baseado num livro de France Vernon Guille e no diário de Adèle H.,
filha de Victor Hugo - e Emma – nome da
personagem que dá título ao famoso romance de Flaubert – duas mulheres
transgressoras - vai alterar de certa forma esse estado de coisas. Continuamos
a assistir às cenas de sexo entre
as duas. Contudo, passamos a torcer para que Adèle e Emma fiquem juntas, pois a
intensidade desses encontros e a relação afetiva entre elas nos convence de que
estamos diante do que chamamos de Amor, não importa o sexo das pessoas
envolvidas. E a relação entre elas é tão intensa que passamos a dar um peso menor
para aproximações que Adèle tem ou teve com homens e, possivelmente, com outras
mulheres.
Poderíamos aqui entrar na discussão se tal filme dialoga com o erotismo
ou com a pornografia, mas não vou entrar nesse assunto. Teria que necessariamente me reportar a Georges
Bataille e tal postagem ficaria demasiadamente extensa para um blog. Contudo,
fica clara como água a força do sexo nas relações humanas e como ele é
importante para a realização de homens e de mulheres como seres humanos.
Gostaria, contudo, de tocar, muito rapidamente, em três questões.
Uma delas diz respeito à presença da cor azul em várias cenas do filme
como já era de se esperar dado o título adotado aqui no Brasil. Tal presença
está identificada à liberdade. Fica então difícil não lembrar de um outro
filme: “A liberdade é azul” (1993), de Krzysztsf Kieslowski, cujo título
original é: “Trois couleurs: Bleu”. Trata-se de uma trilogia que trabalha, em
cada um dos filmes, com uma das cores da bandeira francesa e as relacionava com
o lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.[1]
A liberdade estava relacionada à cor azul e, no filme de Abdellatif Kechiche,
aparece nos cabelos tingidos de Emma, uma estudante de Belas-Artes, como uma
das marcas de liberdade e de autenticidade. E a cor azul - a liberdade – vai
invadindo aos poucos a vida de Adèle, a medida que ela vai se envolvendo com
Emma, a ponto de aquela se vestir de um azul intenso no final do filme. Por
outro lado, o gosto pela estabilidade e algumas das marcas de pertença ao mundo
anteriormente vivido por Adèle vão invadindo a vida de Emma que, no correr do
filme, tem os seus cabelos de volta à cor natural. Contudo, os olhos de Emma
permanecem azuis, num indício de que ela se mantém livre.
A outra questão é que, segundo
pude perceber, no filme, as atitudes de Adèle e de Emma, no espaço doméstico,
não fogem inteiramente a determinados padrões pré-estabelecidos. Isso é visto
na relação de Adèle e Emma, também marcada por uma divisão de tarefas que se
assemelha muito a de casais heterossexuais não progressistas nos dias de hoje.
Essa seria uma marca de ambiguidade, mas a vida –como a arte – não conseguem
escapar dela.
A terceira gira ao redor da insistência de Emma para que Adèle escreva,
porém Adèle se sente feliz como professora, principalmente como professora de
uma classe de alfabetização. E, em uma de suas aulas, a poesia está presente
por meio da leitura feita por seus alunos de jogos de palavras com suas vozes
infantis. Naquela cena, dá para sentir que a professora também trabalha com
arte e, com seu trabalho, desperta novas pessoas para a arte, numa mensagem de
valorização da profissão de professor.
Aqui no Brasil, esse filme, que fala de liberdade, de autenticidade, tem
cenas de manifestações, cita Sartre, valoriza a profissão de professor, chega
num ano em que as pessoas voltaram a protestar nas ruas, algumas claramente
contra o sistema capitalista que aprisiona nossos corpos e nossas mentes.
Estamos vivendo um tempo de transformação. Um tempo que aponta para o quê?
Não sabemos. Sabemos que alguma coisa mudou e que 2014 promete ser um ano de
lutas e – gostaríamos – um ano de busca de ser para si e de ser para o outro.