quinta-feira, 29 de maio de 2014

O tempo não para e as palavras também


                              
                                                

Não tive ainda oportunidade de assistir ao "Ninfomaníaca II". Por tal motivo, fiz um intervalo de postagens em Crítica & Arte, mas assim que assistir a esse filme de Lars von Trier, escreverei sobre ele. Contudo, como dizia o poeta, o tempo não para e a gente vai se deparando com novas questões, com assuntos, com coisas, com pessoas que nos fazem sair, que nos movem do lugar de conforto ou de desconforto em que vivemos.
Recentemente, iniciaram uma polêmica a respeito de uma edição adaptada – para a língua portuguesa dos nossos dias – de “O Alienista”, conto de Machado de Assis, escritor que viveu a maior partir de seus dias no século XIX.
Como foi dito em um livro que também será tema de nossas postagens, o Machado de Assis: por uma poética da emulação (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013), de João Cezar de Castro Rocha, ensaísta e professor da UERJ, a obra de Machado de Assis – mais a da chamada, inclusive pelo próprio Machado, de segunda fase -  dialoga de maneira particular com a obra de vários autores que publicaram antes dele.  Nas palavras de João Cezar:

[...] enquanto a maior parte dos contemporâneos apurava a audição para captar o último grito da moda, o autor de “Uma visita de Alcibíades” viajou à Itália – mas, como o Camões do soneto, não somente à península. Ele frequentou todas as épocas, como se elas compartilhassem o mesmo instante histórico, definido, não pela diacronia do calendário, mas pela simultaneidade dos momentos de leitura e de escrita. A emulação enseja outro tipo de temporalidade, negando a linearidade e recusando superações irreversíveis: não se trata de promover rupturas traumáticas, mas de contribuir para o enriquecimento do repertório comum, na promessa de sincronia entre épocas e tradições diversas. [...][1]

Esse diálogo é mantido, por exemplo, com a obra de Diderot, citado na Advertência que abre Papéis Avulsos, reunião de contos em que figura “O Alienista”.  E por falar em Diderot, em “O Alienista” há referências ao século XVIII, como a de um dos títulos que abrem um dos capítulos que compõem o referido conto.  Trata-se de O Terror, nome pelo qual ficou conhecido um dos períodos posteriores à tomada da Bastilha, na Revolução Francesa. E o século XVIII também ficou conhecido como uma época em que a razão podia explicar o mundo e conduzi-lo ao progresso.
Para Carlos Nelson Coutinho:

 [...] Na época em que burguesia era a porta-voz do progresso social, seus representantes ideológicos podiam considerar a realidade como um todo racional, cujo conhecimento e consequente domínio eram uma possibilidade aberta à razão humana. [...] [2]

 O Século das Luzes estaria inserido nessa época que, segundo Coutinho, se estenderia até o momento em que a burguesia não mais seria portadora desse progresso, transformando-se em uma classe conservadora e reacionária. [3]
Em relação a “O Alienista”, ele foi escrito e publicado pela primeira vez em 1882, em A Estação e, ainda em 1882, foi publicado com algumas modificações em Papéis Avulsos, reunião de contos em forma de livro. Um dos contos que também fazem parte de Papéis Avulsos é “O Espelho” e esse é um dado importante, pois a temática da razão também estará presente em suas páginas.
Bem, voltando a “O Alienista”, por meio de sua leitura podemos perceber uma desilusão com o poder soberano da razão e de seu braço direito, a ciência, para se entender e interpretar o mundo. Mas podemos perceber também o desnudar de determinados discursos manipulatórios utilizados para melhor manobrar o povo (é o caso do episódio do discurso do barbeiro, por exemplo).  
Além disso, nas páginas de Papéis Avulsos, obra em que figura a última edição em vida de Machado de “O Alienista”, nos deparamos com expressões anteriores ao século XIX, como é também o caso de um outro conto que figura naquela obra. Estamos falando de “O Segredo do Bonzo”, que seria, segundo seu subtítulo, um capítulo de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, obra publicada pela primeira vez no século XVI e que, aliás, neste ano da graça de 2014, completa 400 anos.
No caso de “O Alienista” (e não só dele), transformar aquela linguagem escrita e publicada pela última vez com o aval de seu autor em 1882 é modificar substancialmente o texto a ponto de se criar um novo texto que pode até mesmo ser porta de entrada para a leitura de uma edição que tenha como base a edição de 1882 de “O Alienista”, publicada em Papéis Avulsos.  Contudo, a edição modernizada, adaptada para a língua portuguesa dos nossos dias não pode deixar de ter é uma observação bem visível, em sua capa e em sua folha de rosto, sobre a sua especificidade de ser uma edição modernizada, adaptada e simplificada de “O Alienista”. E se essa adaptação for levada às últimas consequências até mesmo o título do conto teria de ser modificado, porque quem usa a palavra alienista nos dias de hoje?
Muitos falam de original, mas há vários sentidos para a palavra original no mundo das edições.
Em Crítica Textual, pode ser considerado original a última edição de uma obra publicada sob a supervisão de seu autor.
O que muitos hoje ignoram é que as obras, ao longo do processo de sua transmissão, sofrem modificações. Algumas delas, autorais. Outras, não-autorais.
Ou seja, as palavras escritas sofrem os efeitos do tempo - e dos seres humanos - e aquele provérbio latino, infelizmente, não condiz, inteiramente, com o que acaba ocorrendo. É preciso o trabalho de um restaurador de textos, o crítico textual, para que as palavras permaneçam tais quais seus autores as escreveram na última edição revista por eles. Porém, conforme o tipo de edição, a roupagem das palavras, a sua grafia, irá sofrer atualização ou não.
E por falar em palavras....
                

  




[1] CASTRO ROCHA, João Cezar. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 258-259.
[2] COUTINHO, Carlos Nelson. O Estruturalismo e a Miséria da Razão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 22.
[3] Cf. Op. Cit. p. 22.