Capítulo XXXIV – Um encontro, um destino: uma âncora, uma
pedra no meio do caminho.
Onde estará João? Onde andará o meu amigo? Em que praia,
ó Deus? Em que terras, ó Pai, andará o meu amigo? Qual será o seu destino? Qual
será, ó Deus, o meu destino?
A última vez que nos falamos via e-mail, João estava
saindo de Roma em direção à Grécia. Será que chegou a Jerusalém? Eu não sei.
Vou terminar de escrever a Conferência para o
Congresso sobre Antero de Quental, que será realizado na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Mas não deixo de pensar em João e no destino. João e o
destino.
Por quanto tempo estive ausente? Por tanto tempo me
ceguei com as próprias mãos como Édipo perdido nas entranhas do destino?
Cavernas imaginárias. Leitos de rios secos, esquecidos, águas de Letes, mas os
veios, agora vias subterrâneas, permanecem, desviando-me do caminho. O
esquecimento que mina, dia após dia, a resistência solitária dos que não aceitam a morte em vida.
Desvio os olhos e, por um momento, não saberei que
trago em mim muitos cadáveres. Corpos. Vontades. Desejos. Da loba. Sim, da
loba. Mulher subterrânea. Mulher presa por amarras invisíveis. E a loba? Sim,
da loba, resta a estátua. Imóvel. A morte. Se eu não penso, ela não existe? A
morte.
Haverá uma chance? Haverá uma única chance que seja?
Oh! Olhem todas as pessoas solitárias, pede a canção
que toca na rádio Renascença.
Oh! Look all the lonely people.
Solitários. Todos nós. Irremediavelmente solitários e
unidos pela linguagem. Mundos inconscientes. Plataformas prontas a serem
utilizadas, antecedem a partida, a chegada. Horizontes previamente violados.
Índias carregando no ventre os filhos do descobrimento. Os filhos do.
Por acaso, as Américas, três ao todo, existiam antes
de serem descobertas pelo Velho Mundo?
O Novo Mundo.
Paisagens novas decifradas por olhares velhos. Muito velhos. Extremamente
velhos. Quase cegos por espelhar o que esperavam ver.
Os descobridores. Os descobridores carregavam em si
caravelas naufragadas em lembranças e imagens. Haverá esperança? Haverá uma
única esperança que seja?
O que pensou Antero no seu último momento? O que
pensou o poeta das Odes em frente,
bem em frente, ao Convento da Esperança? Perguntas, perguntas e mais perguntas
que trabalhos acadêmicos não poderão responder. Nunca. Jamais. Apesar de toda a
teoria. Apesar de toda a crítica e palavras, palavras, palavras que repetem o
que não podem mais dizer. Por quê?
Uma âncora. Uma âncora presa à parede, alçada do fundo
de um fundo de um mar imaginário. Mar de pensamentos, pesadelos represados,
alucinados.
Uma linguagem.
Sempre a linguagem. A linguagem liga a âncora à esperança. A âncora presa à
parede da Esperança.
Um convento. Um
convento que tem por nome a Esperança. Portas e janelas fechadas que se fecham
e que se abrem para portas e janelas interiores. Castelo interior e moradas.
Haverá saída? Haverá uma única saída que seja? Fora a
morte. A morte. (Não. A morte não é uma saída).
O dia depois de outro dia. Sempre novo. E porque novo,
sempre igual ao novo. Ideia do novo. O sol amarelo. Claridade, manhã que se
renova em promessas de amanhã.
Uma promessa.
Uma esperança e uma âncora presa à parede. Antero e a esperança. A esperança
desesperada. Uma esperança. Talvez, a única. Talvez uma pedra no meio do
caminho de um poeta.
Em frente, bem em frente ao Convento da Esperança, na
bela cidade de Ponta Delgada, Açores, o poeta sentado no banco, embaixo de uma
âncora. Veleiros, velas partidas, carcaças de baleias, espumas que saem da boca
dos afogados. E a âncora. A âncora a significar o quê? Uma saída?
Haverá uma chance? Haverá uma única chance que seja?
Recolho os papéis: “A presença da antiguidade
greco-latina na poesia de Antero de Quental”.
Preciso sair. Não só abrir as janelas, escancarar as
cortinas, mas sair. Já é tempo. Já é tempo de ir à Universidade. Estão a me
esperar. O Congresso começa às 9:30.
Escovo os cabelos, ajeito a roupa, um tailler vermelho, comprado num shopping em São Paulo , e dirijo-me à
Faculdade. Haverá tempo?
Abro as janelas e escancaro as cortinas. Penso,
observando Lisboa, como é bela a cidade que promete um passado a cada esquina.
Uma esquina. Meus olhos vislumbram. Outra esquina. E mais além, um pouco mais
além, outra esquina, dessa vez iluminada como um dia de sol.
Meus olhos. Meus olhos passeiam pela capital de um
Portugal europeu. Pós-74. Pós-86. Pós-Brasil, África, Índias Ocidentais,
Orientais. E meu coração tropical não entende nada ou entende muito do que vê
pelas ruas. Pelas ruas de Lisboa, acho-me e perco-me e projeto diferentes
imagens da imagem que tenho de mim. Dos iguais a mim. Dos que têm a mesma
procedência. Do Brasil. De um Brasil. De um sonho de Brasil. Talvez o Brasil
que eu trago em mim. Uma
representação do Brasil. Os jornais falam de brasileiros na Costa da Caparica:
– Brasileiros gostam de samba e futebol. Brasileiros. Há tantos brasis e
brasileiros. E somos todos anjos caídos na cidade hoje. Lisboa, sim, Lisboa.
Meus olhos lhe devolvem o que vejo nas suas e nas minhas entranhas.
Os olhos. Já diziam: janelas da alma.
Olho-me no espelho e parto em direção à Faculdade.
Agora, meus pés andam pelas ruas anteriormente vistas
da janela. Ando, passo a passo, até a Praça Marquês de Pombal. Pego o metrô até
o Campo Grande.
Vou andando. Saboreio com os meus olhos, com o meu
olfato, com o meu tato, com o meu corpo todo aquela paisagem e dou asas, dentro
de mim mesma, ao desejo de ver, cada vez mais, as faces, as ruas, as casas, as
esquinas de Lisboa. A menina que passa. A senhora vestida de preto, com o lenço
preto sobre os cabelos cortados bem curtos.
Há fome nos meus olhos, mas uma fome despertada pela
vontade de olhar, ver, reter, tocar, compreender aquela paisagem toda ela
ancestral, antiga, dos meus avós que atravessaram mares e dobraram as suas
espinhas, outrora rijas, nas terras do Brasil. Mar adentro. No meu sonho, cabe
um mar de esperança. Verde, neste momento azul, como o azul do céu de Lisboa. A
terra prometida. Canaã. Talvez Portugal. Talvez o Brasil e o horizonte à
espera, sempre à espera, país de longas esperas. Intermináveis esperas
intermináveis.
Vou andando. Avisto a Clássica de Letras. Terra à
vista. E o Arquivo Nacional da Torre do Tombo ao fundo.
Vou andando. Revejo rostos conhecidos. Um professor de
Belo Horizonte; duas professoras da Unb. Manuel Monteiro, da Federal da Bahia,
cumprimenta-me com entusiasmo. Um Congresso todo sobre Antero. Estava mais do
que na hora. É mais do que oportuno.
Duas monitoras recebem-me com atenção. Uma diz: Seja
bem vinda Senhora Doutora. Outra pergunta: A Senhora Doutora já pegou a sua
pasta? Digo que não e sou levada à sala em que estão distribuindo o material do
evento: pasta, bloco, caneta, caderno de resumos, crachá com etiqueta em que
posso ler o meu nome. Meu nome. Eliana. Depois de tantos anos, reconheço, sob o
meu nome, a mim mesma. Eu, Eliana.
Não digo as últimas palavras em voz alta. Digo-as para
mim. Para o meu deleite e prazer.
Há luz nessa manhã. Há luz nos meus olhos. E, por
detrás dessa luz, há muitas trevas. Âncoras, esperanças, um poeta caído em
frente à Esperança.
Alguém me chama. Uma voz, uma voz que não me é
estranha. E quando me viro, vejo o rosto de um homem, que eu conheço de algum
lugar.
Ele se adianta e diz: – Foi em São Paulo. Meus
papéis caíram em
plena Avenida Paulista e tu ajudaste-me a apanhá-los do chão.
Agora me lembro daqueles olhos. Negros como o mar nos
braços da noite.
Algo naquele homem me atrai. Seu olhar tem em mim o
efeito do canto das sereias aos ouvidos dos antigos navegantes. Seu nome, ele
me diz, Eduardo Machado, é como o perfume derramado ...
Ele me olha e parece enxergar-me por dentro e levar consigo
a minha vontade, como fazia a Blimunda, do Memorial
do Convento, de Saramago. E eu tenho medo, muito medo de que o meu olhar
traduza o que sinto naquele momento. Minha vontade. A vontade que eu tenho é de
me deixar levar e levá-lo comigo. Beijar-lhe a boca e deitar-me com ele. E
fazê-lo sussurrar, falar macio, gemer. Uma mulher tem poderes. Sim, eu os sei.
Eu sei.
Eduardo me olha com os olhos negros que me parecem
levar até uma espécie de paraíso. Elegias para sempre intermináveis. O verão no
corpo, em mim toda.
Meus seios sentem-se acariciados pelo seu olhar, numa
promessa de jardins para sempre suspensos. Há fontes de águas milenares
correndo em mim.
Eduardo compreende, olha-me e não diz palavra alguma.
Saímos os dois juntos e descemos as escadarias da
Clássica de Lisboa. E bem em frente àquele prédio, sem havermos dito mais nada,
nos beijamos como se houvéssemos nos reencontrado após uma grande ausência, um
longo sono, uma longa viagem. Uma distância que não mais existe.
Há outras linguagens, eu sei. Meu corpo sabe e
agradece.