sexta-feira, 18 de setembro de 2015

REFLEXÕES SOBRE 'ADEUS À LINGUAGEM' DE JEAN LUC-GODARD


Em um mundo repleto de informações, o que significa  ‘Adeus à linguagem’?
A qual linguagem ou função da linguagem esse filme se reporta?
Essas são apenas duas dentre as inúmeras questões que se abrem a quem assiste ao novo filme de Godard e, para tentarmos respondê-las, vamos partir de algumas definições de linguagem.
A primeira delas encontramos quando acessamos Significados.com.br e diz que linguagem: “ [...] é o sistema através do qual o homem comunica suas ideias e sentimentos, seja através da fala, da escrita ou de outros signos convencionais. [...]”. [1] Nesse site, também podemos ler que há vários tipos de linguagem, por exemplo: verbal, não-verbal, mista.
A segunda, está estampada nas páginas da segunda edição, em português, do Dicionário de Linguística, de Jean Dubois, Mathée Giacomo, Louis Gnespin, Chistiane Marcellesi, Jean-Baptiste Marcellesi e Jean-Pierre Mevel, publicado pela Cultrix, em 2014, em que lemos: 

Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos vocais (ou língua *), que coloca em jogo uma técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função simbólica e de centro nervoso geneticamente especializados. Esse sistema de signos vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade linguística) determinado constitui uma língua particular. Pelos problemas que apresenta, a linguagem é o objeto de análises muito diversas, que implicam relações múltiplas: a relação entre o sujeito e a linguagem, que é o domínio da psicolinguística; entre a linguagem e a sociedade, que é o domínio da sociolinguística; entre a função simbólica e o sistema que constitui a língua; entre a língua como um todo e as partes que a constituem; entre a língua como sistema universal e as línguas que são suas formas particulares; entre a língua participar como forma comum a um grupo social e as diversas realizações dessa língua pelos falantes, sendo tudo isso o domínio da linguística. [...] [2]

Acerca dessas relações, muitas delas são problematizadas no filme de Godard.  Mas, em ‘Adeus a linguagem’, a linguagem humana e seu papel de comunicar pensamentos, sentimentos, emoções está em crise, embora, nesse filme, a linguagem não esteja restrita aos seres humanos. A presença do cão e sua interação com a natureza, assim como com o casal que o abriga e o adota é um exemplo do que acabamos de dizer. Porém, em  ‘Adeus à linguagem’, como já observamos, a possibilidade de comunicação pela linguagem é colocada em xeque, assim como a capacidade de os seres humanos vivenciarem sentimentos e conseguirem se libertar da chamada sociedade do espetáculo, das aparências, dos papéis pré-fixados, determinados por expectativas sociais e pelo grande poder que as imagens e sua beleza, muitas vezes desvinculada de um sentido ético, exercem sobre nós, seres humanos. 
A comunicação ou falta de comunicação pela grande quantidade de informações fragmentárias e profusão de imagens nos dias de hoje é um tema central no filme e uma de suas cenas mais emblemáticas é a em que algumas pessoas estão entretidas com seus celulares, enquanto uma outra pessoa folheia alguns livros, lê o título de alguns deles, cita uma de suas passagens, olha algumas capas em que estão escritos títulos que são expostos de uma maneira que, se o espectador quiser lê-los, terá que fazer um esforço, enquanto luzes - que evocam a rapidez de acesso a informações que se seguem a novas informações - emanam dos celulares.      
        Nesse filme de Godard, estamos aparentemente ou verdadeiramente diante de um paradoxo, porque, desde que começamos a assisti-lo – e mesmo antes, nas chamadas do filme -, são a nós apresentadas várias imagens – algumas de grande beleza – e várias citações de frases de autores, algumas delas ligadas a acontecimentos históricos de diferentes séculos como o XVIII, o XIX e o XX, porém seu poder de comunicação e nossa capacidade de entendê-las são prejudicados por sua proposital profusão e descontextualização.  
Diante de tantas frases e imagens, há uma que chamou especialmente a nossa atenção. É a seguinte (faço a citação de cabeça):  “a imagem assassina o presente”. Ou seja: diante de uma enxurrada de informações, a comunicação é dificultada e mesmo impossibilitada, produzindo uma espécie de narcisismo, de isolamento, de culto da beleza pela beleza, de alienação do presente.
A questão da beleza irmanada à verdade, presente em Platão, por exemplo, também é exposta no filme e problematizada. Nesse mesmo caminho, o filme também foi disponibilizada em versão 3D. Embora eu não tenha tido até o momento a possibilidade de assisti-lo nessa versão, acredito que o seu uso dialoga com a crítica – construída também por meio de dados que vão além do filme em si - ao culto à novidade, ao novo, ao processo de envelhecimento ou ao antigo, esses dois últimos fatalmente ligados, em muitas partes da Terra, nos dias de hoje, ao conformismo e à perda da busca de experimentação de novos caminhos, busca essa presente na própria postura do cineasta que, aos 84 anos, está em franca atividade e realiza um filme tão inovador quanto perturbador de determinados condicionamentos – construídos também pelo uso da linguagem -  que chegam a aprisionar até mesmo a nossa consciência, a nossa maneira de ver e de estar no mundo.  Não podemos negar que o currículo do autor, sua trajetória e notoriedade também condicionam a recepção da obra por parte do público e geram significados ao próprio filme.
E é também à linguagem cinematográfica, ao uso aleatório de determinadas linguagens como a 3D que esse filme vem subverter, conforme crítica publicada na Folha de São Paulo.[3]  Além disso, percebemos também tal efeito por meio do uso descontextualizado de determinados efeitos e enredos, como na cena em que escutamos um tiro, a mulher se movimenta como se tive sido atingida, mas seu corpo - pelo menos aparentemente - não foi ferido, apesar de que, em uma outra cena, vermos que há sangue escorrendo na banheira, Seria mais do que uma referência ao deslocamento: uma imagem literalmente visual do que podemos entender por metáfora e ‘Adeus à linguagem’ é pleno de metáforas assim como a própria vida. Há ainda jogos de palavras que redimensionam o título desse filme de Godard em que Adieu passa a Ah! Dieu e au langage passa a oh, langage. [4]
          Nas referências, por exemplo, a Frankenstein, de Mary Shelley, e a momentos da vida daquela escritora também assistimos à alusão ao descolamento e ao condensamento de alguns temas e de algumas citações presentes no filme. Em uma dessas citação, podemos assistir a mais uma prova do virtuosismo do diretor que consegue, por meio da imagem, nos provocar a sensação de aspereza, por meio da visualização do contato do material que aquela autora se utiliza para assinar seu nome e o papel em que ela o assina, o que podemos chamar, num sentido lato, de sinestesia cinematográfica.
Nesse filme de Godard, na linha de aproximação entre as artes, há ainda uma citação de um famoso e polêmico quadro de Courbet, “A Origem do Mundo”, somada à alusão à floresta, que também está presente quando o cão passeia na natureza, o que nos remete ao paraíso perdido (inclusive à obra de Milton, citada também em Frankenstein, de Mary Shelley). Tal cão está vinculado àquele que guia as almas dos mortos, figura essa presente na mitologia da antiguidade, como também sonha com as Ilhas Marquesas, cujo nome, em língua marquesa do sul, significa  “A terra dos homens”.[5]   
 Há também várias referencias ao cinema mudo. Inclusive, em várias cenas do filme, em uma tela de tv LCD virada para os espectadores, passam cenas de outros filmes, que não são acompanhados pelo casal que se encontra na casa, mas a tela continua ligada.  
   Falando em casal, ele, em ‘Adeus à linguagem’ não é apenas um, mas se confunde com outro, como também há o impedimento por parte da mulher que é casada, o que também problematiza e potencializa a dicotomia citada verbalmente no filme entre sexo e morte; infinito e zero, o que nos remete ao título de O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, um dos filósofos citados em ‘Adeus a Linguagem’, como também à definição de má-fé, segundo esse mesmo filósofo. Explico: os casais estão como que ilhados na casa em que passam um tempo. Quanto tempo? Não sabemos.  Porém, não há possibilidade de vencer o bloqueio que se coloca entre a desigualdade de condições de entrega daqueles que formam o casal ou os casais que dividem (?) algumas das cenas daquele filme, apesar do poder do sexo, como também da própria intimidade. Como é dito na crítica que citei quando falei dos jogos de palavras, o fio da história, em ‘Adeus à linguagem’ é, propositalmente, muito tênue, o que vai provocar um emaranhado da narrativa: de que casal estamos falando? É uma das perguntas recorrentes ao assistimos o filme.
E diante de tantas impossibilidades e dificuldades de comunicação e de entendimento presentes nesse filme de Godard, num tempo em que abrimos os jornais, assistimos televisão ou acessamos a internet e nos deparamos com a  imagem de uma criança, que deveria estar dormindo numa cama em sua casa, mas que está morta, de bruços, em uma praia, na tentativa de ela e sua família, entre outras pessoas, viverem uma vida mais digna em outro país, o filme de Godard se coloca como um poderoso antídoto contra: a naturalização do absurdo; a perda de interação entre sentido, sentimento e linguagem, como também contra a cristalização de sentidos que nos aprisionam em modos de vidas extremamente distantes do que podemos chamar de liberdade, fraternidade, igualdade.  ‘Adeus à linguagem’ é também um alerta sobre a importância dos sentidos e dos afetos, que também são formas de entendimento e de comunicação com nós mesmos, com os outros e com o mundo que nos cerca.
Não é possível terminarmos de assistir a esse filme e ficarmos imunes a seu apelo à maior interação afetiva entre os seres, seja rechaçando a hipocrisia social em que a dificuldade de comunicação é praticamente ignorada; a alienação é fomentada e a desconexão provocada pela intensificação da velocidade desenfreada de informações como de profusão de novas tecnologias/mercadorias /supérfluos em nossas vidas nos colocam diante de um mundo que transforma quase tudo em transitório, superficial e efêmero, um campo propício à desertificação de nossos sentidos e sentimentos, um campo propício para que sejamos cada vez mais e mais submetidos à servidão moderna.[6]












[1] SIGNIFICADO de Linguagem. In: http://www.significados.com.br/linguagem/ (Acesso em 06/09/2015).

[2]  A referência está no corpo do texto.

[3] GUENESTRETI, Guilherme.  Em ‘Adeus à Linguagem’, Godard subverte formato da moda em Hollywood. In: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/07/1661173-em-adeus-a-linguagem-godard-subverte-formato-da-moda-em-hollywood.shtml (Acesso em 06/09/2015).


[6]  Referência ao documentário de Jean-François Brient e Victor León Fuentes que dialoga – a nosso ver - com o  filme de Godard. 

quarta-feira, 29 de julho de 2015

PERGUNTAS QUE NOS LEVAM À HEMIRENA, UMA CONTRIBUIÇÃO À DESCONSTRUÇÃO DO FEMININO COMO ESTEREÓTIPO DA ETERNA PASSIVIDADE



Procurando uma música no Youtube, sou surpreendida por com um anúncio da Aways Brasil que, antes que eu tenha tempo de clicar na figura que me permitiria pulá-lo, me traz a seguinte questão: “Será que nós colocamos limitações para as meninas?”
Essa pergunta desperta minha atenção porque, além de me remeter ao tempo em que eu era menina, me induz a pensar também em minhas filhas, em o que é ser mulher neste mundo que, muitas vezes, nem nos tem como interlocutoras e continuo a assisti-lo.
Todas as meninas que aparecem na propaganda respondem que sim à pergunta inicial e uma delas diz: “Eu não posso salvar uma pessoa. É sempre os meninos que salvam as meninas nas histórias".
Penso imediatamente em que muitas e muitas mulheres trouxeram e trazem uma vida em seus ventres e que mulheres, sendo ou não mães, contribuíram e contribuem na construção do mundo. Mas muitos não enxergam assim. Não digo as pessoas que produziram a propaganda citada nesta postagem. Trata-se de uma propaganda que estimula a superação das limitações que nos são impostas e que critica imposições que procuram oprimir-nos. Falo daqueles que, no passado, não conseguiram e que, no presente, não conseguem ver nós mulheres como seres humanos. É triste e, não só triste, é inaceitável que tal atitude persista nos dias de hoje. Continuo a assistir a propaganda e, diante da fala da menina - “Eu não posso salvar uma pessoa [...]” -, penso também em uma personagem de uma obra literária, hoje, praticamente esquecida, pois raramente é mencionada nas páginas das histórias das literaturas brasileira e portuguesa e mesmo nas escolas e universidades brasileiras. Trata-se de Hemirena de Máximas de Virtude e Formosura ou Aventuras de Diófanes, escrita, segundo Barbosa Machado, por Teresa Margarida da Silva e Orta. Mas por que digo: segundo Barbosa Machado? Porque essa obra foi publicada com pseudônimo – Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira - e teve sua autoria contestada em 1790, quando foi atribuída a Alexandre de Gusmão, escrivão da Puridade no reinado de D. João V.[1] Contudo, Barbosa Machado, um importante bibliófilo, em um dos alentados volumes da Biblioteca Lusitana, atribui a autoria dessa obra à Teresa Margarida que, diga-se de passagem, nunca a renegou.[2]
 Teresa Margarida da Silva e Orta nasceu na cidade de São Paulo, em 1711 ou 12 e faleceu em Belas, Portugal, em 1793.
  Foi muito criança – com cinco ou seis anos – para Lisboa e parece que não mais retornou à terra em que viu as primeiras imagens e em que ouviu os primeiros sons.
  Muito provavelmente escreveu Máximas de Virtude e Formosura com que Diófanes, Climinea e Hemirena, Príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça, obra cujo título é imenso, como era comum às publicações no Século XVIII.[3] Sua primeira edição é de 1752, saída pela Tipografia de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Ofício, e com todas as licenças necessárias. Teve mais algumas edições ainda no século XVIII, inclusive uma outra no próprio ano de 1752, e uma edição, com graves problemas, inclusive de supressão de capítulos, saída no século XIX, mais precisamente em 1818, pela Tipografia Rollandiana. Teve ainda algumas poucas edições no século XX (1945 e 1993) e uma edição crítica publicada no início do século XXI, em Portugal, pela Caminho (2002, sob a responsabilidade de Maria Santa Cruz, uma das principais estudiosas dessa obra)[4] e uma tese de doutorado, que também é uma edição crítica, realizada com apoio da FAPESP, por aquela que escreve estas linhas.[5] Contudo, nos século XVIII e XIX, tal obra sofreu graves problemas no processo de sua transmissão. Entre esses problemas, podemos citar: mudança de título (Máximas de Virtude e FormosuraAventuras de DiófanesHistória de Diófanes) e de atribuição de autoria, como já dissemos, e supressão de capítulos (por exemplo: na edição de 1818, foram retirados três dos cinco capítulos publicados em 1752). Tais problemas atrapalharam e muito a divulgação dessa obra entre os estudiosos das literaturas  portuguesa e brasileira, como também o próprio tema de Máximas de Virtude e Formosura contribuiu para mantê-la fora de publicações do século XIX sobre e de literatura brasileira, porque a sua temática tem mais um caráter universal, não dialogando com a exaltação exacerbada do nacional e da cor local. Mas, e Hemirena? Por que me lembrei dela ao assistir a propaganda? Vou lhes contar: numa certa altura da narrativa, Hemirena se veste de homem e passa a se chamar Belino. Ou seja: ela, assim como Diadorim de Grande Sertão Veredas, se disfarça de homem. Porém, o narrador ou a narradora sabe - e nos informa - que Belino é Hemirena. Numa outra passagem da história, há um naufrágio e é Belino (Hemirena) que salva as pessoas que iam se afogar. Ou seja: os leitores têm conhecimento de que quem salva as pessoas das águas é uma mulher e essa mulher tem força, tem inteligência e beleza: virtude e formosura.[6]
 Está mais do que na hora de obras como Máximas de Virtude Formosura ou Aventuras de Diófanes serem mais divulgadas e de fazerem parte dos nossos currículos de ensino de literatura. A sua presença e a sua leitura, além de contribuírem para o maior conhecimento do que foi produzido como obra de ficção, no século XVIII, em prosa, em língua portuguesa, vai nos ajudar a desconstruir imagens estereotipadas do sexo feminino, no caminho de um mundo com mais igualdade de direitos para todas e para todos.





[1] A grafia do pseudônimo não foi atualizada.
[2] É interessante assinalar que a biblioteca de Barbosa Machado é uma das bases da reconstrução da Real Biblioteca de Portugal e da origem da nossa Biblioteca Nacional (RJ), Brasil. 
    Sobre a questão da atribuição de autoria, até o momento, não são conhecidos documentos em que Teresa Margarida tenha renegado a autoria da obra em questão nem documentos em que Alexandre de Gusmão tenha assumido sua autoria.
[3] A grafia desse título foi atualizada por nós.
[4] Maria Santa Cruz é autora de um dos trabalhos mais abrangentes e eruditos sobre as influências que essa obra de Teresa Margarida recebeu. Trata-se de Crítica e Confluência em Aventuras de Diófanes. Lisboa, 1990. Dissertação de Doutorado.
[5] As edições de 1945, 1993 e a edição crítica de 2002 têm, como texto-base, o texto publicado em 1793, último em vida de Teresa Margarida da Silva e Orta, falecida em 20 de outubro de 1793. A edição crítica que faz parte da tese escrita por mim tem, como texto-base, a edição de 1752, primeira edição da obra em questão. Vale ressaltar que a edição de 1993 foi preparada também por aquela que escreve estas linhas. A edição de 1945 foi preparada por Rui Bloem.
 [6] Hemirena é uma figura contraditória. Ela também apresenta um perfil muitas vezes ligado ao estereótipo da mulher passiva. Contudo, as suas contradições colocam, a meu ver, em questão tal passividade.

terça-feira, 31 de março de 2015

A respeito de Relatos Selvajes


     Estou lendo Rayela em espanhol numa edição comemorativa aos cinquenta anos de publicação – completados em 2013 - dessa revolucionária obra de Júlio Cortázar.[1]  Recentemente, para um evento de que participei na UFF, reli “Consideração do poema”, de Carlos Drummond de Andrade. [2]
                  Tanto uma frase de Cortázar (“[...] El fondo de un hombre es el uso que haga de sua libertad. [...])” , que podemos ler na página 602 naquela publicação comemorativa,  assim como a primeira estrofe do referido poema de Drummond (“Não rimarei a palavra sono/com a incorrespondente palavra outono./ Rimarei com a palavra carne/ou qualquer outra, que todas me convêm./As palavras não nascem amarradas,/ elas saltam, se beijam, se dissolvem,/ no céu livre por vezes um desenho,/são puras, largas, autênticas, indevassáveis./[...]”) me fazem pensar num filme que assisti recentemente aqui no Rio. Trata-se de “Relatos Selvajes,” película que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano de 2015, porém não levou a estatueta.   
     Sim, a liberdade, segundo Cecília Meireles “[...] essa palavra/ que o sonho humano alimenta:/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda [...]”, perpassa todo o filme. Mais a falta de liberdade traduzida pela adequação a papéis e a normas sociais que geraram e que geram diferentes graus de renúncias que a construção de civilizações impuseram aos seres humanos como indivíduos é tema também desses Relatos chamados de salvajes e construídos nas brechas das rotinas e em situações limite em que seres humanos escapam ou são arremessados para fora das amarras a eles (a nós) impostas pelas normas sociais e por uma realidade que mais parece um pesadelo. [3]
      Há tempos, não me impactava tanto com um filme.
      “Relatos Selvajes “ começa mostrando a que veio.
      Já nas cenas iniciais, nos é sorrateiramente dada a ver uma revista, em que podemos surpreender a imagem de uma pequena gazela apavorada tentando fugir de seus predadores famintos. Tarefa praticamente inglória a da gazela, pensamos. É muito difícil, quase impossível, que ela consiga escapar. Contudo, nessa altura, ainda não conseguimos perceber que muitas das personagens daquela película - assim como nós - estamos, sim, no lugar daquela gazela: fugindo – numa fuga muitas vezes inglória – de predadores numa sociedade que está à beira da barbárie, onde a mentira, a corrupção, a cooptação ao sistema vigente são a norma.
     Também é bastante curiosa a abertura do filme em que aparecem vários animais, entre eles, a raposa. E fica muito difícil não fazer uma ligação entre os relatos que seguem àquela apresentação com histórias em forma de poemas que tiveram destaque há muito tempo, na Idade Média, e que possivelmente se mantêm vivos no que podemos chamar de parte do imaginário popular ou não tão popular assim. Estamos falando de Le Roman de Renart, em que uma raposa tenta ludibriar alguns de seus companheiros como o lobo e o corvo. Contudo, nessas histórias também há crítica de costumes que ocorre ferozmente em “Relatos Selvajes,” um filme que, às vezes, quase se deixa levar por alguns ditos e hábitos cristalizados pelo senso comum, mas que consegue, como num passe de mágica, escapar deles e mostrar algumas das lutas travadas no que há de mais íntimo de muitos de nós. [4]
    Diz Cortázar, numa das cartas a Jean Barnabé, contidas na edição anteriormente citada, também na página 602: “ [...] Lo que creo es que la realidad cotidiana en que creemos vivir es apenas el borde de una fabulosa realidade reconquistable, y que la novela, como la poesia, el amor y la acción, deben proponerse penetrar en esa realidad.[...]
    Em “Relatos Selvajes”, podemos entrever em alguns momentos essa realidade e também (mas não só) como que os problemas que vivemos no Brasil se parecem tanto com os de nossos irmãos argentinos e talvez, quem sabe, com os de  toda a América Latina ainda tão próxima dos efeitos das ditaduras por que passou num tempo que ainda perpetua suas marcas e seus herdeiros.





[1] CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Aguilar/Altea/Taurus/Alfaguara, 2014.
[2] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Consideração do poema". In: ---. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[3] MEIRELES, Cecília. Romanceiro XXIV ou da Bandeira da Inconfidência. In: Romanceiro da Inconfidência. In: http://professor.ucg.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5628/material/Cec%C3%83%C2%ADlia%20Meireles%20-%20Romanceiro%20da%20Inconfid%C3%83%C2%AAncia%20%5BRev%5D%5B1%5D.pdf
[4] Sobre “Le Roman de Renart”: http://www.infopedia.pt/$romance-de-renart