Lemos, no Segundo
Caderno de O Globo, na Seção “O Bonequinho
Viu...”, pequenos trechos de críticas curiosamente conflitantes sobre o filme
de Andrey Zviaguintsev, um dos indicados ao Oscar 2015 de melhor filme
estrangeiro. Num, o de Rodrigo Fonseca, o
bonequinho aplaude de pé e está escrito: “Um tributo à tradição cinematográfica
soviética num ensaio devastador sobre a corrupção russa.” No outro, o de Mario
Abbade, o bonequinho dorme e podemos ler: “Banaliza a política interna russa,
com uma mensagem de que é impossível acontecer uma mudança”. Contudo, se nos
permitirmos recordar cenas de “Leviatã”, corremos o risco de perceber que
grande parte delas se passa nas proximidades do mar, o mar que tanto fascina
como assusta muitos de nós, seres humanos. O mar que também acompanha o dia a
dia de boa parte dos habitantes do mundo.
Esse filme, muito mais
do que uma crítica à corrupção russa e à política interna russa tem o alcance
de uma crítica à corrupção e a políticas que sufocam a vida de homens,
mulheres, adolescentes e crianças na Terra. É uma crítica contundente a padrões
de comportamento que facilitam a dominação de seres humanos por seres humanos
que há muito se transvestem com pele de cordeiro e roubam o sentido de justiça,
de liberdade de muitos para transformar tais sentidos em sentimento de
resignação, de humilhação, de submissão com o fim de se locupletarem de
dinheiro e mais dinheiro e capital e PODER.
Nesse filme, a
autoridade religiosa mais paramentada daquela localidade parece que segue à risca
uma famosa citação atribuída a Nietzsche e/ou a Dostoievski: “Se Deus está
morto, então tudo é permitido”. [1]
As palavras desse religioso e seu olhar
comungam do desatino dos loucos e do cinismo dos mentirosos, contudo, esse
desatino e esse cinismo são amainados ou acobertados pelos signos e símbolos de
PODER que adornam àquela personagem. Contudo, o estranhamento pela falta de
conexão entre o que é dito e o que é pregado por essa grande autoridade religiosa
vai de encontro aos espectadores como as ondas que parecem querer invadir e
livrar aquela península de todos os males provocados pelo lobo do homem. Mas o
que destrói a casa da personagem principal masculina não é a força do mar, da
natureza e sim a ganância dos homens e as máquinas que estão a seu
serviço.
Uma cena emblemática do
filme é a do tiro ao alvo, quando retratos emoldurados de autoridades
soviéticas são apresentados como futuros alvos no lugar de garrafas quebradas.
Contudo, tais retratos não chegam a ser utilizados como tal e no gabinete do
prefeito corrupto encontra-se o retrato do atual presidente da Rússia, Vladimir
Putin, no cargo desde 2012, portanto, bem depois do que chamam de Perestroika.
Vale dizer que nos créditos iniciais do filme há menção do apoio do governo da
Rússia ao filme de Zviaguintsev.
Já o religioso mais
simples, o que carrega o pão, parece acreditar nas palavras que diz à
personagem masculina principal do filme. Mas suas palavras parecem cair no
vazio e fomentar a falta de iniciativa que as longas esperas intermináveis
costumam ocasionar nos seres humanos.
Quanto às mulheres, em “Leviatã”, na sua
maioria, são seres humanos com status muito inferior aos homens, tanto aos
agentes do Poder quanto aos que sofrem os desmandos do Poder sustentado pela
corrupção e pelo silêncio de homens e de mulheres. [2]
Mas vale lembrar que uma espécie de poder que as mulheres desfrutam, em
“Leviatã”, sobre os homens é o do sexo, mas tal poder não as ajudam a se
libertar de sua condição de seres humanos educados e mantidos na
subalternidade. Outra espécie de poder de que desfrutam é quando se transformam
também em agentes da corrupção, como a juíza que lê as sentenças.
No fim do filme, vem uma
grande sensação de impotência, mas também a de que o mundo é muito menor do que
parece ser (efeitos positivos da globalização?!), apesar das várias línguas e
de costumes diversos, e que os males que
assolam a muitas pessoas não são privilégios de nós, brasileiros, e sim de uma engrenagem
de dominação e espoliação produzida por seres humanos que faz e se faz do homem
como lobo do homem.
O “Leviatã” de hoje não é um ser marinho que,
para nós, séculos e séculos e séculos depois das grandes navegação, não é um
monstro dos mares.
O “Leviatã” é o ser humano e o Estado construído
por seres humanos para dominar, roubar, escravizar e destruir seres
humanos.
Haverá, então,
possibilidade de justiça?
Assunto complicado. A República de Platão tem início com um
diálogo sobre o que é justiça.
Em “Leviatã”, há um leve
aceno nessa direção – a possibilidade de justiça - quando é citado o Livro de Jó, em que também aparece o
monstro Leviatã.
Jó sofreu os maiores
percalços, os maiores dissabores e infortúnios. Foi duramente testado e injustiçado,
mas teve os últimos dias abençoados por Deus.[3]
Em “Leviatã”, a questão
central não está em torno de Deus, mas dos horrores, dos crimes, da ação dos
usurpadores de discursos, da corrupção, do compactuar com os agentes do Poder,
do silêncio e da inercia dos “inocentes”, da estagnação sem compromisso com o presente
e com futuro, das arbitrariedades muitas vezes comedidas em seu nome, mas que
nem sequer comungam de algum propósito que podemos chamar de religioso nem
humanista.
Acabado o filme, seus créditos
ainda passam na tela - a música, obra humana,
torna-se mais alta - e um de seus efeitos é o de lançar – como as ondas
nas pedras - novamente o espectador numa pergunta despertada e fomentada ao
longo do filme: haverá possibilidade de justiça entre os seres humanos?
Aqui no Brasil, na Rússia e em todas
as parte do mundo habitado por seres humanos, vai depender do que fizermos e do
que deixarmos de fazer.
[1] Sobre essa
citação apócrifa, leia-se: CAVA, Bruno. In: http://www.quadradodosloucos.com.br/274/deus-esta-morto-entao-tudo-e-permitido/
[2] Veja-se o belo texto de Flávio Max sobre “Leviatã : http://dopapelaomovimento.blogspot.com.br/2015/02/leviata-quando-fe-nao-move-mais.html
[3] Livro de Jó. In: BÍBLIA Sagrada. Edição
Pastoral-Catequética. 132 ed. São Paulo: Editora Ave-Maria.
Nota
sobre o texto na folha de rosto desta edição: “A Bíblia Ave-Maria é uma
tradução dos originais hebraico e grego feita pelos Monges de Maredsous
(Bélgica).