Estou lendo Rayela em espanhol numa edição comemorativa aos cinquenta anos de
publicação – completados em 2013 - dessa revolucionária obra de Júlio Cortázar.[1] Recentemente, para um evento de que
participei na UFF, reli “Consideração do poema”, de Carlos Drummond de
Andrade. [2]
Tanto
uma frase de Cortázar (“[...] El fondo de un hombre es el uso que haga de sua
libertad. [...])” , que
podemos ler na página 602 naquela publicação comemorativa, assim como a primeira estrofe do referido
poema de Drummond (“Não rimarei a palavra sono/com a incorrespondente palavra
outono./ Rimarei com a palavra carne/ou qualquer outra, que todas me convêm./As
palavras não nascem amarradas,/ elas saltam, se beijam, se dissolvem,/ no céu
livre por vezes um desenho,/são puras, largas, autênticas, indevassáveis./[...]”) me fazem pensar num
filme que assisti recentemente aqui no Rio. Trata-se de “Relatos Selvajes,”
película que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano de 2015,
porém não levou a estatueta.
Sim, a liberdade, segundo Cecília
Meireles “[...] essa palavra/ que o sonho humano alimenta:/ que não há ninguém
que explique/ e ninguém que não entenda [...]”, perpassa todo o filme. Mais a
falta de liberdade traduzida pela adequação a papéis e a normas sociais que
geraram e que geram diferentes graus de renúncias que a construção de
civilizações impuseram aos seres humanos como indivíduos é tema também desses
Relatos chamados de salvajes e construídos nas brechas das rotinas e em
situações limite em que seres humanos escapam ou são arremessados para fora das
amarras a eles (a nós) impostas pelas normas sociais e por uma realidade que
mais parece um pesadelo. [3]
Há tempos, não me impactava tanto com um
filme.
“Relatos Selvajes “ começa mostrando a
que veio.
Já nas cenas iniciais, nos é sorrateiramente
dada a ver uma revista, em que podemos surpreender a imagem de uma pequena gazela apavorada tentando fugir de seus predadores famintos. Tarefa praticamente
inglória a da gazela, pensamos. É muito difícil, quase impossível, que ela
consiga escapar. Contudo, nessa altura, ainda não conseguimos perceber que
muitas das personagens daquela película - assim como nós - estamos, sim, no
lugar daquela gazela: fugindo – numa fuga muitas vezes inglória – de predadores
numa sociedade que está à beira da barbárie, onde a mentira, a corrupção, a
cooptação ao sistema vigente são a norma.
Também é bastante curiosa a abertura do
filme em que aparecem vários animais, entre eles, a raposa. E fica muito
difícil não fazer uma ligação entre os relatos que seguem àquela apresentação
com histórias em forma de poemas que tiveram destaque há muito tempo, na Idade
Média, e que possivelmente se mantêm vivos no que podemos chamar de parte do
imaginário popular ou não tão popular assim. Estamos falando de Le Roman de Renart, em que uma raposa
tenta ludibriar alguns de seus companheiros como o lobo e o corvo. Contudo,
nessas histórias também há crítica de costumes que ocorre ferozmente em
“Relatos Selvajes,” um filme que, às vezes, quase se deixa levar por alguns ditos
e hábitos cristalizados pelo senso comum, mas que consegue, como num passe de
mágica, escapar deles e mostrar algumas das lutas travadas no que há de mais
íntimo de muitos de nós. [4]
Diz Cortázar, numa das cartas a Jean Barnabé,
contidas na edição anteriormente citada, também na página 602: “ [...] Lo que
creo es que la realidad cotidiana en que creemos vivir es apenas el borde de
una fabulosa realidade reconquistable, y que la novela, como la poesia, el amor
y la acción, deben proponerse penetrar en esa realidad.[...]
Em “Relatos Selvajes”, podemos entrever
em alguns momentos essa realidade e também (mas não só) como que os problemas
que vivemos no Brasil se parecem tanto com os de nossos irmãos argentinos e
talvez, quem sabe, com os de toda a
América Latina ainda tão próxima dos efeitos das ditaduras por que passou num
tempo que ainda perpetua suas marcas e seus herdeiros.
[1] CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos
Aires: Aguilar/Altea/Taurus/Alfaguara, 2014.
[2] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Consideração do poema". In: ---. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[3] MEIRELES, Cecília. Romanceiro XXIV
ou da Bandeira da Inconfidência. In: Romanceiro da Inconfidência. In: http://professor.ucg.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5628/material/Cec%C3%83%C2%ADlia%20Meireles%20-%20Romanceiro%20da%20Inconfid%C3%83%C2%AAncia%20%5BRev%5D%5B1%5D.pdf
[4] Sobre “Le Roman de Renart”:
http://www.infopedia.pt/$romance-de-renart