Procurando uma música no
Youtube, sou surpreendida por com um anúncio da Aways Brasil que, antes que eu
tenha tempo de clicar na figura que me permitiria pulá-lo, me traz a seguinte
questão: “Será que nós colocamos limitações para as meninas?”
Essa pergunta desperta minha
atenção porque, além de me remeter ao tempo em que eu era menina, me induz a
pensar também em minhas filhas, em o que é ser mulher neste mundo que, muitas
vezes, nem nos tem como interlocutoras e continuo a assisti-lo.
Todas as meninas que
aparecem na propaganda respondem que sim à pergunta inicial e uma delas diz:
“Eu não posso salvar uma pessoa. É sempre os meninos que salvam as meninas nas
histórias".
Penso imediatamente em que
muitas e muitas mulheres trouxeram e trazem uma vida em seus ventres e que mulheres,
sendo ou não mães, contribuíram e contribuem na construção do mundo. Mas muitos
não enxergam assim. Não digo as pessoas que produziram a propaganda citada
nesta postagem. Trata-se de uma propaganda que estimula a superação das
limitações que nos são impostas e que critica imposições que procuram oprimir-nos.
Falo daqueles que, no passado, não conseguiram e que, no presente, não
conseguem ver nós mulheres como seres humanos. É triste e, não só triste, é
inaceitável que tal atitude persista nos dias de hoje. Continuo a assistir a
propaganda e, diante da fala da menina - “Eu não posso salvar uma pessoa [...]”
-, penso também em uma personagem de uma obra literária, hoje, praticamente
esquecida, pois raramente é mencionada nas páginas das histórias das literaturas
brasileira e portuguesa e mesmo nas escolas e universidades brasileiras.
Trata-se de Hemirena de Máximas de
Virtude e Formosura ou Aventuras de
Diófanes, escrita, segundo Barbosa Machado, por Teresa Margarida da Silva e
Orta. Mas por que digo: segundo Barbosa Machado? Porque essa obra foi publicada
com pseudônimo – Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira - e teve sua autoria
contestada em 1790, quando foi atribuída a Alexandre de Gusmão, escrivão da
Puridade no reinado de D. João V.[1]
Contudo, Barbosa Machado, um importante bibliófilo, em um dos alentados volumes
da Biblioteca Lusitana, atribui a
autoria dessa obra à Teresa Margarida que, diga-se de passagem, nunca a renegou.[2]
Teresa Margarida da Silva e Orta nasceu na
cidade de São Paulo, em 1711 ou 12 e faleceu em Belas, Portugal, em 1793.
Foi muito criança – com cinco ou seis anos –
para Lisboa e parece que não mais retornou à terra em que viu as primeiras
imagens e em que ouviu os primeiros sons.
Muito provavelmente escreveu Máximas de Virtude e Formosura com que Diófanes, Climinea e Hemirena,
Príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça, obra cujo
título é imenso, como era comum às publicações no Século XVIII.[3]
Sua primeira edição é de 1752, saída pela Tipografia de Miguel Manescal da
Costa, Impressor do Santo Ofício, e com todas as licenças necessárias. Teve
mais algumas edições ainda no século XVIII, inclusive uma outra no próprio ano
de 1752, e uma edição, com graves problemas, inclusive de supressão de
capítulos, saída no século XIX, mais precisamente em 1818, pela Tipografia
Rollandiana. Teve ainda algumas poucas edições no século XX (1945 e 1993) e uma
edição crítica publicada no início do século XXI, em Portugal, pela Caminho
(2002, sob a responsabilidade de Maria Santa Cruz, uma das principais
estudiosas dessa obra)[4]
e uma tese de doutorado, que também é uma edição crítica, realizada com apoio
da FAPESP, por aquela que escreve estas linhas.[5]
Contudo, nos século XVIII e XIX, tal obra sofreu graves problemas no processo
de sua transmissão. Entre esses problemas, podemos citar: mudança de título (Máximas de Virtude e Formosura – Aventuras de Diófanes – História de Diófanes) e de atribuição de
autoria, como já dissemos, e supressão de capítulos (por exemplo: na edição de
1818, foram retirados três dos cinco capítulos publicados em 1752). Tais
problemas atrapalharam e muito a divulgação dessa obra entre os estudiosos das
literaturas portuguesa e brasileira,
como também o próprio tema de Máximas de
Virtude e Formosura contribuiu para mantê-la fora de publicações do século
XIX sobre e de literatura brasileira, porque a sua temática tem mais um caráter
universal, não dialogando com a exaltação exacerbada do nacional e da cor
local. Mas, e Hemirena? Por que me lembrei dela ao assistir a propaganda? Vou
lhes contar: numa certa altura da narrativa, Hemirena se veste de homem e passa
a se chamar Belino. Ou seja: ela, assim como Diadorim de Grande Sertão Veredas, se disfarça de homem. Porém, o narrador ou a
narradora sabe - e nos informa - que Belino é Hemirena. Numa outra passagem da
história, há um naufrágio e é Belino (Hemirena) que salva as pessoas que iam se
afogar. Ou seja: os leitores têm conhecimento de que quem salva as pessoas das
águas é uma mulher e essa mulher tem força, tem inteligência e beleza: virtude
e formosura.[6]
Está mais do que na hora de obras como Máximas de Virtude Formosura ou Aventuras de Diófanes serem mais
divulgadas e de fazerem parte dos nossos currículos de ensino de literatura. A
sua presença e a sua leitura, além de contribuírem para o maior conhecimento do
que foi produzido como obra de ficção, no século XVIII, em prosa, em língua
portuguesa, vai nos ajudar a desconstruir imagens estereotipadas do sexo
feminino, no caminho de um mundo com mais igualdade de direitos para todas e
para todos.
[2] É interessante assinalar que a biblioteca de Barbosa Machado é uma das bases
da reconstrução da Real Biblioteca de Portugal e da origem da nossa Biblioteca
Nacional (RJ), Brasil.
Sobre a questão da atribuição de autoria,
até o momento, não são conhecidos documentos em que Teresa Margarida tenha
renegado a autoria da obra em questão nem documentos em que Alexandre de Gusmão
tenha assumido sua autoria.
[4] Maria Santa
Cruz é autora de um dos trabalhos mais abrangentes e eruditos sobre as influências que essa obra de Teresa Margarida recebeu. Trata-se de Crítica e Confluência em Aventuras de
Diófanes. Lisboa, 1990. Dissertação de Doutorado.
[5] As edições
de 1945, 1993 e a edição crítica de 2002 têm, como texto-base, o texto
publicado em 1793, último em vida de Teresa Margarida da Silva e Orta, falecida
em 20 de outubro de 1793. A edição crítica que faz parte da tese escrita por mim tem,
como texto-base, a edição de 1752, primeira edição da obra em questão. Vale
ressaltar que a edição de 1993 foi preparada também por aquela que escreve
estas linhas. A edição de 1945 foi preparada por Rui Bloem.
[6] Hemirena é
uma figura contraditória. Ela também apresenta um perfil muitas vezes ligado ao
estereótipo da mulher passiva. Contudo, as suas contradições colocam, a meu
ver, em questão tal passividade.