Diante da onda assustadoramente conservadora
e reacionária que invadiu, mas que já estava presente, embora de forma quase
que silenciosa – faz tempo - em nosso país e em outras partes do mundo, como
Estados Unidos, França, Argentina etc, além de, no caso do Brasil, ao ataque à
figura do professor, à democracia e à liberdade de expressão, por meio do
projeto da chamada Escola sem Partido; como também ao ataque ao pensamento
crítico e ao acesso a um ensino de qualidade nas escolas e nas universidades
por meio da reforma do ensino médio, realizada através de Medida Provisória, ou
seja, sem discussão alguma, por imposição; pelo golpe que violentou o voto de
mais de 50 milhões de brasileiros; pela PEC que congela, por 20 longos anos, os
investimentos em infraestrutura, inclusive, em saúde e em educação (vejam vocês
os ataques à UERJ); pela ameaça propagada pela possível reforma da previdência
e das leis trabalhistas é comum nos perguntarmos sobre o papel do intelectual,
das escolas e das universidades, na construção de um pensamento crítico que nos
ajude a separar o joio do trigo na guerra diária de difusão de desinformação
por parte de parte considerável da mídia empresarial, além de nos ajudar na construção
de um mundo mais justo em que os seres humanos não sejam mais lobos de seres
humanos nem do planeta Terra.
Somam-se ao conjunto de ataques já citados, a
profusão de guerras que além de matar milhares de pessoas, também obriga
milhões de seres humanos a abandonar suas casas na tentativa de se refugiarem
em outros países, tentativa essa que os coloca, na maior parte das vezes, em
situação de fragilidade, de pobreza e de
ameaça à própria vida. Juntam-se às
guerras, o consumismo exacerbado que também ameaça a liberdade e a vida; além
de o culto ao capital financeiro; a profusão dos agronegócios, de agrotóxicos e
da predadora pregação do estado mínimo que, sempre nefasta, num país como o
Brasil, que ainda não superou séculos de escravidão, de exclusão, de
oligarquia, de meritocracia, de racismo, de machismo, de homofobia, é, na
prática, embora escamoteada, a defesa de
uma política genocida.
Diante desses horrores, nos perguntamos se
uma disciplina como a Filologia pode contribuir e, se pode, como pode
contribuir para a formação de um mundo democrático, humanitário, rumo a uma
sociedade verdadeiramente igualitária, solidária e por que não dizer socialista?
Bem, quando pensamos na formação deste novo
e, hoje, timidamente nascente mundo, nos lembramos - quase que automaticamente
- de uma palavra deveras esquecida ou, no
mínimo, relegada, na atualidade, a um segundo plano: esta palavra é humanismo.
Por humanismo, entendemos, aqui, conforme
Edward Said, na tradução do Prefácio da edição de 2003, presente na quarta
reimpressão da nova edição de Orientalismo:
O Oriente como invenção do Ocidente, publicada em 2007, em língua portuguesa,
pela Companhia das Letras.
São palavras de Said (2007, p. 19),
traduzidas por Rosaura Eichenberg:
[...] Por humanismo
entendo, antes de mais nada, a tentativa de dissolver aquilo que Blake chamou
de grilhões forjados pela mente, de modo a ter condições de utilizar histórica
e racionalmente o próprio intelecto para chegar a uma compreensão reflexiva e a
um desvendamento genuíno.
Isso significa que cada campo individual está ligado a todos
os outros, e que nada que acontece em nosso mundo se dá isoladamente e isento de influências
externas. [...]
Neste mesmo Prefácio, Said faz
um grande elogio à Filologia, a despeito daqueles que ainda hoje teimam em
silenciá-la, no meio acadêmico e mesmo fora dele, e que fazem, ainda que, em
muitos casos, sem o saberem e sem má intenção – lembremos ou não do ditado
popular - o jogo do autoritarismo.
Para Said (2007, p. 22):
Em vez de alienação e hostilidade para com
uma época e uma cultura distintas, a filologia, tal como aplicada à literatura
universal, pressupunha um profundo espírito humanista empregado com
generosidade e, se me permitem o termo, com hospitalidade. Assim, a mente do intérprete abre ativamente espaço
para o Outro não familiar, e essa abertura criativa de um espaço para obras
que, no mais, são estrangeiras e distantes é a faceta mais importante da missão
filológica do intérprete.
Ainda segundo Said (2007, p. 22):
Obviamente,
tudo isso foi minado e destruído pelo nazismo. Depois da guerra, registra
Auerbach melancolicamente, a estandardização das ideias e a especialização cada
vez maior do conhecimento foram gradualmente estreitando as oportunidades para
o tipo de trabalho filológico indagador e perenemente investigativo que ele
representava; por desgraça, é ainda mais deprimente constatar que, desde a
morte de Auerbach, em 1957, tanto a ideia como a prática da pesquisa humanista
se retraíram em amplitude e em centralidade. A cultura do livro baseada em
pesquisas de arquivo bem como os princípios gerais da vida intelectual que um
dia formaram as bases do humanismo como disciplina histórica praticamente
desapareceram. [...]
E
Said continua, entre outros assuntos, a discorrer sobre causas e consequências
do apagamento dos estudos filológicos e da própria ideia de humanismo neles
contida.
Hoje é lamentável que o próprio nome de
Auerbach não seja comumente relacionado, na maioria dos meios universitários
brasileiros, à Filologia, a ponto de chegarem a citar e a falar sobre a obra do
autor de Mimeses sem se reportarem,
ao menos uma vez, aos estudos filológicos.
A
Filologia passou a ser tratada como uma espécie de tabu. Uma palavra, uma disciplina que, em muitos casos, não deve ser
mencionada e, mais grave ainda, que deve ser propositalmente apagada,
invisibilizada, enterrada. Contudo, a partir dos finais dos anos 80 e inícios
dos anos 90 do século XX, no Brasil e em Portugal, para falarmos apenas de dois
dos países em que a língua predominante é a portuguesa, a Filologia vem, embora
lentamente, sendo revalorizada seja pela necessidade de constituição de corpora para estudos de variação linguística,
seja pela premência de realizações de
edições críticas de obras de autores como, por exemplo, Fernando Pessoa
e Eça de Queirós. É também dessa época, mais precisamente do ano de 1995, a
publicação de um importante e sintomático texto da lavra de Ivo Castro, cujo
título é “O Retorno à Filologia”, um marco e um manifesto, podemos assim
considerá-lo, dessa revalorização.
Não estamos com isto dizendo que antes do
início dos anos 80 do século XX, não
houvesse esforço, no Brasil, de revalorização e mesmo a realização de trabalhos
nesta área. Só para citar alguns desses esforços, destacamos dois dentre vários
deles: o de institucionalização da Filologia Portuguesa, mais tarde chamada Filologia,
depois, Crítica Textual e, hoje, Crítica Textual/Ecdótica I, como disciplina
autônoma e obrigatória em todos os cursos de graduação em Letras da
Universidade Federal Fluminense, em 1978, por meio da incansável atuação de
Maximiano de Carvalho e Silva e o da criação do curso de Mestrado em Letras, na
Universidade Federal da Bahia, em 1976, cuja área de concentração menor em
Filologia Românica esteve durante muitos anos sob a responsabilidade de Nilton
Vasco da Gama. Lembramos ainda que um dos maiores nomes da Filologia em língua
portuguesa foi o de uma mulher, cujo nome é Carolina Michaelis de Vasconcelos.
Mas quando falamos em Filologia, devemos explicar sobre qual Filologia estamos
falando, pois tal palavra é polissêmica e seu uso corresponde a um grande leque
de estudos, pesquisas e atividades, como muito bem preveniu Maximiano de Carvalho
e Silva, em Crítica Textual –conceito-objeto-finalidade.
Estamos
falando de Filologia, conforme a definição presente em Introdução à Crítica Textual, de César Nardelli Cambraia (2005,
p.18), professor da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, que diz:
[...] emprega-se aqui o termo filologia
para designar o estudo global de um texto,
ou seja, a exploração exaustiva e conjunta dos mais variados aspectos de um
texto: linguístico, literário, crítico-textual, sócio-histórico, etc.
Contudo, para nós,
tal definição não se distancia muito da que considera Filologia como Crítica
Textual, porém da Crítica Textual entendida em sentido amplo, ou seja: como o
estudo da transmissão de
textos e a restituição desses textos a uma representação da última ou, conforme
as necessidades de pesquisa ou do público, de uma das redações autorais, não nos
esquecendo de textos que formam a tradição direta e indireta da obra que
estamos trabalhando ou vamos trabalhar. Além disso, estuda a materialidade
desses textos, as etapas do processo de sua construção e de sua gênese e os
aproxima, por meio de interpretações e de comentários, aos leitores ao longo do
tempo.
Encarar a materialidade dos textos como
objeto de investigação é deveras importante para os estudos de literatura e,
recentemente, tal materialidade foi tema de um curso dado, após a programação
de palestras e simpósios da ABRALIC, em setembro de 2016, por um dos mais
prestigiosos historiadores da cultura, na atualidade: Roger Chartier.
Segundo Rosa Borges e Arivaldo Sacramento
de Souza, ambos professores da UFBA, no capítulo Filologia e Edição de Textos da
obra Edição de Textos e Crítica
Filológica (2012, p. 54):
É precisamente “contra a abstração dos textos”, perspectiva adotada por
quase todas as abordagens de crítica literária do séc. XX e do começo deste,
que se vê a relevância da crítica textual. Nela, não se faz a oposição binária
entre texto físico/material versus texto abstrato; afinal, como aponta
Chartier, quando um “mesmo texto” muda de suporte, não há apenas uma simples
transposição de uma massa textual, e sim a recriação de outras coordenadas
histórico-culturais que implicam outros sentidos. […]
Mas por que a abstração dos textos se tornou hegemônica “em quase
todas as abordagens de crítica literária do século XX e do começo deste”?
Em relação ao meio universitário
brasileiro, a nosso ver, muito contribuiu, para esse estado de coisas, a forte
difusão e posterior hegemonia, durante anos, do Estruturalismo e de correntes
estruturalistas, que muito criticavam o estudo do contexto das obras e
praticamente nada falavam do processo de sua transmissão, embora, em países como
a Itália, por exemplo, de grande tradição filológica, a difusão do Estruturalismo
parece não ter enfraquecido tais estudos. Ao contrário, parece ter aberto tais estudos a novas
perspectivas e a novas indagações, conforme podemos depreender da leitura de Tradição e Invenção: a Semiótica
Literária Italiana, de Sonia Salomão (1993). Todavia, a difusão dos estudos da
Filologia Italiana, no Brasil, quando eles chegavam ou chegam até aqui,
raramente se dava ou dá com o nome de estudos filológicos ou Filologia ou
Crítica textual. Além disso, a entrada do Estruturalismo, nas universidades
brasileiras, dar-se-á num momento extremamente conturbado e ainda não
suficientemente estudado da história de nosso país, que foi o da ditadura
civil-empresarial-militar que durou 21 anos e que teve início no ano de 1964 e
têm, infelizmente, vários pontos de contato com o momento político que estamos
vivendo hoje, no Brasil, tempos de golpe e de ataques à classe trabalhadora e
aos direitos duramente conquistados por aqueles e aquelas que vieram antes de
nós.
A Filologia nos aproxima de épocas
e de obras que foram escritas em tempos que não necessariamente são e serão de
um passado extremamente distante, mas que também poderão estar separados de nós
por muitos e muitos séculos.
Por meio dela, da Filologia, podemos
procurar provocar o estranhamento proposto, no Teatro, por Bertold Brecht, pois
divulgamos e estudamos obras a partir de um mergulho na sua transmissão, nos
textos que as formam, no estudo possível de sua gênese a partir de um olhar que
interroga os textos a partir de sua historicidade, sem nos esquecermos de pesquisarmos
também sua possível recepção. Por exemplo, a primeira vez que o conto “O
Alienista” foi publicado foi em um periódico intitulado A Estação, Jornal Ilustrado para a Família. Esse jornal era formado
por dois cadernos. Um com moldes, informações sobre moda etc e outro que era
destinado à literatura e a textos informativos sobre medicina por exemplo.
Nesse segundo caderno, foi publicado, “O Alienista”, que inclusive, tem um
final diferente do que é difundido hoje, pois quando quando foi reunido na
publicação de 1882, a de coletânea de contos intitulada Papéis Avulsos, teve uma significativa passagem do final suprimida
pelo autor.
O estranhamento provocado pela
leitura de um jornal do passado, assim como o da presença de um conto como “O
Alienista” num jornal como A Estação, pode nos ajudar a pensar, a questionar, por
exemplo, a forma e o conteúdo dos jornais da atualidade, pois fica evidente que
os jornais sofreram mudanças, com o passar do tempo e que havia e há condições
subjetivas e materiais para que sua apresentação, sua forma e seu conteúdo
fossem e sejam alterados. Nesse sentido, o estudo e a prática da Filologia pode
também incorporar as críticas que autores como Walter Benjamin fizeram ao que
chamaram de historicismo. Podemos, sim, incorporar como fundamental, para nós,
intelectuais que nascemos e/ou vivemos num país que sofreu e que sofre por ter
passado por processos extremamente autoritários como os de colonização e de
escravidão e que ainda sofre pela manutenção dos privilégios das oligarquias
servis ao capital financeiro internacional, como pela constante exploração da
classe trabalhadora, pelo ataque à saúde e à educação públicas e pela nova
tentativa de manter o Brasil, no cenário internacional, como uma colônia de
exploração, uma leitura crítica de textos como Sobre o conceito de história.
Uma das críticas que Benjamin faz ao que ele
chama de historicismo é que o historicismo seria um legitimador, um propagador,
um mantenedor da dominação daqueles e daquelas que são os vencidos, os
oprimidos ao longo do tempo.
É muito conhecida a passagem da
referida obra de Benjamin (2012, p. 245), traduzida para o português que diz:
[…] Nunca houve
um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie.
E assim como o próprio bem cultural não
é isento de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão em que foi passado
adiante. Por isso, o materialista histórico se desvia desse processo, na medida
do possível. Ele considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.
Porém, nos parece que estudar e colocar a
nu tais processos, além de propor leituras críticas sobre eles é também contribuir
para que possamos ter condições de deslocá-los
de suas posições de hegemonia e de dominação, além de lançarmos nossos olhares
para processos que foram esquecidos e derrotados pelos donos do poder, como diz
indiretamente a passagem acima citada.
Outra
passagem de extrema importância, para nós, intelectuais que não desejamos, assim como acontece em várias cenas de um
filme chamado Matrix, nos
transformar, mesmo que contra a nossa vontade, em agentes do poder constituído,
é a seguinte (2012, p. 244):
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como
ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma recordação, como ele relampeja
no momento de um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de fixar uma
imagem do passado da maneira como ela se apresenta inesperadamente ao sujeito
histórico, momento do perigo. O perigo ameaça, tanto a existência da tradição
como os que a recebem. Ele é um e o mesmo para ambos: entregar-se às classes
dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso tentar arrancar a
tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem
apenas como redentor; ele vem também como vencedor do Anticristo. O dom de
despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos
estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de
vencer.
Estou convencida do que disse Benjamin.
E
a Filologia que trabalha em constante colaboração com a Hermenêutica e sua
proposta de leituras e de comentários de textos de um passado recente ou
distante pode nos ajudar a “arrancar a tradição ao conformismo”, conforme disse
Benjamin, e a caminhar na propagação do humanismo conforme ainda fala Said em
sua obra.
Basta termos coragem de nos
posicionarmos a favor da classe trabalhadora e de, com nossas pesquisas, nossos
estudos e nossas práticas, darmos voz ao potencial revolucionário e
transformador que foi e é constantemente soterrado, mas que, como um relâmpago,
conforme imagem de Benjamin, nos apresenta no presente, como possibilidade de
justiça, de mudança, de redenção e de construção de um mundo onde todas e todos
possam viver com dignidade.
Referências Bibliográficas:
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Alienista. In: A Estação.
Jornal
Illustrato Para a Familia. Rio de Janeiro. 15 out 1881 –
15
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O Alienista. In: ---. Papéis
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BORGES, Rosa/ SOUZA, Arivaldo Sacramento
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e Edição de Textos. In: BORGES, Rosa/SOUZA, Arivaldo
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CASTRO, Ivo. O Retorno à Filologia. In:
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1º. Sem. 2014.
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SALOMÃO, Sonia. Tradição e Invenção. A Semiótica Literária
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Acesso em 31/01/2017.