Uma pipa leve como o vento cruza os céus em zigue zague. O movimento, que
vai sendo vivamente construído, aparenta por si só arquitetar um sentido, uma
linguagem, uma espécie de tentativa de comunicação (ou não seria melhor dizer
libertação?). Na outra ponta, segurando a linha, um menino, com os pés no
asfalto, dá a impressão de escapar por aquilo que mais parece ser uma janela
aberta ao infinito: a pipa aos olhos do menino. Aos meus olhos de menina...
Faz tempo... Muito tempo...
Eu gostaria de conhecer a natureza das coisas, o que move o mundo, as
pessoas.
Desde pequena, observava familiares que me rodeavam, que habitavam a
velha casa da Tijuca. As histórias que eles contavam povoavam pouco a pouco o mundo
de lugares, de pessoas, de um passado anterior ao meu nascimento, e influenciavam-me
no dia a dia. Naquela época, eu não sabia que a Terra é imensamente maior e
mais complexa que o globo azul pousado no bureau
amarelo da biblioteca de meu pai.
Já adulta, graduada e pós-graduada, trabalhando como professora na
universidade, pensei em escrever um tratado, um ensaio sobre a vida e suas contradições,
talvez baseado em Por uma moral da
ambiguidade, de Simone de Beauvoir. Ser e Não-Ser. Viver e Morrer.
Participar ou Deixar-se levar. Perspectivas diversas de interpretar, de
interpelar o mundo. Mas nada como as atribulações diárias para dissuadir-nos de
planos, de ideias que não têm raízes em nossas preocupações mais imediatas: como
um relógio que não para, acompanhei a doença de minha mãe e tive que abandonar
o projeto. Depois de meses internada no CTI de um hospital particular, na
Lagoa, zona sul do Rio, Ela faleceu. E eu me senti como que atirada a um abismo
povoado por vozes incessantemente reiteradas num desespero, num desassossego que
até então jamais havia experimentado.
Negava-me a acreditar que minha mãe
havia falecido. Julgava que quando eu chegasse em casa, ela estaria lá, talvez
lendo seu livro preferido, talvez ouvindo seu quase inseparável rádio de pilha,
porém essa ilusão não passou de uma tentativa frustrada de defesa contra aquela
perda irreparável. Sim, soube o que é uma perda irreparável. Súbita e
ferozmente, o tempo me pareceu, como um grande devorador de todas as espécies
de seres, de histórias, de sonhos que antes viviam e tinham força, mas agora...
É inverno no Rio. Junho.
Pula a fogueira iaiá. Pula a fogueira ioiô...
A música ecoa de uma casa, enfeitada de
bandeirinhas brancas, azuis, vermelhas, verde-amarelas. Há cheiro de pipoca no
ar, cheiro de salsichão, cheiro de infância. Na certa, há canjica,
pé-de-moleque, bolo de milho, de fubá, de aipim. O som da sanfona ajuda a aquecer,
a alimentar, a aumentar a vontade de recordar lembranças adormecidas: São João,
acende a fogueira do meu coração, diz a canção.
Talvez seja melhor escrever um romance.
Palavras que de certa forma me ajudem a lembrar de parte do que vivi. Palavras que de
certa forma tragam de volta aqueles que já partiram. Mas como escrever um
romance? Como vencer a apatia que me habita hoje o peito, as ações? Bem sei. Um
romance não é uma biografia. Um romance é uma espécie de jogo de espelhos. Uma
ficção, por mais bases que tenha na realidade, é ficção apesar de ser real a
dor e a alegria que emanam de sua fruição e de sua escrita. Já dizia Fernando
Pessoa. Lembram-se do poema que fala do fingidor? (O poeta é um fingidor./
Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente).
Alguns dizem: recordar é viver. Digo agora nestes tempos sombrios: recordar
para viver. Hoje, talvez pudesse ser esse o meu lema, caso tivesse forças de
empunhar um lema. O que preciso? Sei do que preciso: é sair do estado de
tristeza profunda que faz com que eu olhe as pessoas nas ruas e pense: todos e
todas – inclusive você e eu – um dia, vamos morrer. Todos e todas – inclusive
você e eu - somos futuros cadáveres e as ruas, uma espécie de walking dead em tempo real. Então, por
que andar? Por que fazer qualquer coisa se, um dia, vamos todos...? Sim, vocês
dirão, é depressão, ou talvez a constatação da constante e permanente e ininterrupta
transitoriedade da vida que se transforma como as águas de um rio... já dizia
Heráclito... Nunca nos banhamos nas mesmas águas. Águas que se deslocam numa
correnteza tão forte quanto a vertiginosa força das cataratas que desafia
imagens enganosamente cristalizadas do presente, a exibir a fluidez de cada
momento que ainda não faz parte do que chamamos de passado. E do passado, se
mudarmos o d para r e colocarmos um acento agudo no primeiro a, ele, o passado,
ganhará asas e habitará, de novo, nossos corações e, assim, passaremos a
chamá-lo de recordações que talvez nos levem ao que conseguimos preservar em
nós do que vivemos na água primeira que conhecemos, também chamada pelo nome
científico de líquido amniótico, mas eu diria: lar. Lembranças, muitas delas
tão antigas que não conseguimos mais afastá-las de nós para que tenhamos alguma
distância delas e possamos percebê-las, vê-las, recordá-las, aconchegá-las
dentro de cada um de nós e nos libertarmos de nossas amarras ou daquilo que
acreditamos ser o nosso âmago e a nossa ânima, para alçarmos voos ao encontro
do que estava esquecido, adormecido, quase morto, mas que possivelmente era uma
parte de nós com dificuldades de caber em padrões pré-estabelecidos e que mesmo
assim gritava, gritava ainda que silenciosamente em nós. Meninas gostam de
bonecas. Meninos de soltar pipa. A pipa continua a cruzar os céus. Meus olhos a
seguem com curiosidade e carinho e as lembranças, apesar de adormecidas, não
deixam de vir à tona da minha pele de mulher e muitas vezes falam como
linguagens que nos adoecem ou nos curam enquanto nos projetam para um futuro
sempre incerto, mas também sempre promessa. Projetos, sim, que se lançam e nos
lançam para o futuro, como as pipas que, após cruzarem o céu, vamos buscar. Fomos
também um projeto e, muitos de nós, um sonho de amor de dois seres a quem
chamamos Pais. Já dizia Sartre, os projetos nos mantêm vivos. Como engenheiros
e arquitetos, planejamos uma estrada, um caminho antes mesmo e sem garantia
alguma de percorrê-los. Na natureza, tudo aparentemente é simples. Vejam as
flamboayans... Elas florescem no verão; as cerejeiras, na primavera. Pensando
bem, tenho um projeto: escrever um romance e, para escrevê-lo, terei que enfrentar
a rotina que corrói os sonhos. Assumir minha subjetividade e trabalhar. Já
dizia Maykovsky: "É preciso/arrancar alegria/ do futuro." Sim. Posso vencer o
branco da página. Ou melhor: posso tentar entendê-lo e aprender a escutar, a
perscrutar as palavras que, mesmo silenciosas, estão em todos os lugares: nos
olhos das pessoas, no sorriso das gentes, na pressa momentaneamente estancada
na espera do sinal que ainda vai abrir, nos sonhos dos que dormem, na cidade
mais próspera, no país distante, em tudo, tudo que existe - ou que existiu - há
palavras. Até o silêncio, o caos e a morte são por elas nomeados. Sim. Talvez
consiga escrever um romance.
É noite de São João. (continua)