Uma surgiu da carne. A outra, da fantasia.
Alícia adora fechar os olhos e sonhar acordada, dormindo.
Alice prefere correr pelos campos repletos de margaridas.
Uma vive distante de quase tudo. Não chora, não ri.
A outra é curiosidade. Faz perguntas, quer saber.
De dia, Alícia estuda, arruma o quarto, lê histórias da carochinha, navega na Internet.
De noite, Alice vem visitar os sonhos de Alícia.
(De dia também, quando há alguma notícia ruim ou quando o mundo
parece não ter mais lugar para crianças como Alícia).
Alícia é feita de prosa.
Alice, de poesia.
Uma adora ficar escondidinha.
A outra prefere passear livremente pelo País das Maravilhas
(- Olha lá o Coelho Branco, o Chapeleiro Maluco e o sorriso do Gato, ou será a lua?...)
Em uma noite (destas que ninguém esquece...)
Alícia encontrou Alice no meio da floresta.
(Talvez Alice estivesse procurando sua gatinha, a Diná).
Mas Alice não parava de caminhar floresta adentro.
Olhava para os lados. Procurava, procurava (ninguém sabe o quê).
De repente, Alice desapareceu e Alícia surgiu em seu lugar.
O sol iluminou seu rosto.
Já era hora de acordar.
Alícia pulou da cama.
Abriu a janela. Admirou as margaridas e:
- O mundo não era mais o mesmo...
(talvez fossem seus olhos ou, quem sabe, os olhos de Alice).
Originalmente publicado em Talento feminino em prosa e verso II. São Paulo: Scortecci, 2004, p. 26, e postado neste blog, originalmente, em 28 de fevereiro de 2017, com pouquíssimas alterações.
sábado, 12 de outubro de 2019
sábado, 31 de agosto de 2019
"Paul Klee, Equilíbrio Instável"
A
primeira vez que ouvi falar o nome Klee, referente a Paul Klee, foi por meio da leitura de Sobre o conceito da
História, de Walter Benjamin, com tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Nesse texto,
o filósofo alemão, no fragmento 9, diz:
[...] Há
um quadro de Klee que se chama Angelus
Novus. Nele está desenhado um anjo que parece estar na iminência de se
afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, seu
queixo caído e suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu
semblante está voltado para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa a seus pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas a tempestade sopra
sobre o paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que o anjo não pode
mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas diante dele cresce até
o céu. É a essa tempestade que
chamamos progresso (BENJAMIN, 2012, p. 245-246).
E, pelo
que temos vivenciado em nosso país, é muito difícil lermos o supracitado texto
de Benjamin, como também observarmos o também citado quadro de Paul Klee e não
relacionarmos tal texto e tal quadro com formas de denúncias de opressões e de
barbáries que, apesar de seus autores não estarem mais entre nós, nos legaram
suas obras que continuam a acalentar esperança na capacidade de indignação do ser
humano diante das opressões e da barbárie e a nos dizer que não estamos
sozinh@s, inclusive a nos lembrar daqueles e daquelas que viveram, que sonharam
e que lutaram antes de nós.
Sim.
Diante do que temos vivido no Brasil (crescimento da extrema-direita e de
vários processos de destruição, como: aceleração do desmatamento da floresta
amazônica; invasão de territórios de povos originários; ataques à saúde e à educação
públicas; aniquilamento de direitos trabalhistas; processo de desmonte da
previdência social; fortalecimento do autoritarismo, da intolerância, do
descaso com a vida, especialmente da juventude negra, assim como da epidemia de
desesperança, essa última também alimentada por parte da mídia, para não
citarmos mais e mais ações que estão operando o que podemos chamar de
desmantelamento do Estado brasileiro, assim como da Constituição de 1988, que recebeu
o epíteto de Cidadã) é muito difícil não relacionarmos a época em que Benjamin
e Klee viveram com os tempos sombrios de hoje.
Diante do que estamos vivendo e também
pela necessidade mais do que premente de, num país como o nosso, escovarmos,
como disse o filósofo alemão, a história a contrapelo, tenho lido
recorrentemente textos de Walter Benjamin, em traduções para o português, e
estou cada vez mais interessada no processo de gênese e de transmissão de sua
obra.
A respeito de Paul Klee, no dia 11 de
agosto, fui, com minha filha Susana, à exposição de parte de sua obra, no
Centro Cultural Banco do Brasil, no centro do Rio.
O título da exposição, “Paul Klee –
Equilíbrio Instável”, dialoga e muito com como grande parte de nós se sente
hoje.
A exposição vai de desenhos feitos por
um Paul Klee ainda menino para passar
diretamente para a fase em que ele já havia se iniciado em técnicas de desenho
mais apuradas. É impressionante a passagem do Klee criança para o artista que
já começa a estudar sistematicamente a técnica pictórica, apesar de o artista
almejar, segundo informação que consta num dos escritos que fazem parte da
exposição, “uma naturalidade da expressão pictórica e uma redução à essência
[...]”. O artista passa também para técnicas de desenho do corpo humano, com
estudos de anatomia, para partir para uma arte mais abstrata em que Klee se debruça
sobre o sonho, numa influência do Surrealismo, não abandonando a denúncia da
opressão e do autoritarismo.
Destaco
aqui também a parte em que são mostradas técnicas utilizadas por Paul Klee. Ou
seja, o artista também como estudioso e pesquisador do seu ofício, numa
aproximação da arte com a ciência.
Outra parte bastante interessante é a que
apresenta fantoches feitos por Klee para seu filho, numa aproximação da arte
com o jogo, a representação.
E por
falar em jogo, a exposição tem uma proposta de não podermos voltar à sala de que
saímos, durante, pelo menos, a visita que estivermos fazendo naquele momento. Se
quisermos retornar à sala anterior, teremos que iniciar uma nova visita, numa
espécie de representação de fluxos da vida, do tempo e de momentos que compõem
a vida. Além disso, há uma frase de Paul Klee, presente na exposição, que diz:
“A arte não reproduz o visível; ela torna visível” numa tradução de uma das
propostas da obra de Paul Klee que continua a ser uma espécie de luz –
utilizando, aqui, nesta postagem, uma imagem presente no Prefácio de Homens em tempos sombrios, de Hannah
Arendt - na atualidade, e nos ajuda a perceber os tempos sombrios e formas de resistência
e de enfrentamento, hoje, 2019, na vida cotidiana e na arte.
“Paul
Klee, Equilíbrio Instável” já passou pelo CCBB das cidades de São Paulo e do Rio
de Janeiro. Agora está no CCBB de Belo Horizonte (MG), na Praça da Liberdade,
até 18 de novembro.
Referências:
ARENDT, Hannah. Prefácio. In:
---. Homens em tempos sombrios.
Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 9.
BENJAMIN, Walter. Sobre o
conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. Obras Escolhidas I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 8 ed.
São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245-246.
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
Stella Leonardos
Volto
a postar neste Blog, apesar de andar bastante desanimada com a situação do
nosso país. Vivemos tempos sombrios. Porém, é preciso resistir e, para
resistirmos, nada melhor do que fazermos o que mais gostamos: no meu caso,
escrever e ler; ler e escrever. Então, lembrei-me que, no dia 1o de
agosto, faria aniversário a grande escritora Stella Leonardos. Faria, porque,
para tristeza daquelas e daqueles que a conheceram, ela faleceu neste ano de
2019.
Stella
era uma das grandes incentivadoras de escritoras e de escritores iniciantes e
que ainda não haviam conseguido a tal almejada divulgação da obra, coisa tão
difícil neste país marcado por opressões e desigualdades, e ela permanece como
uma das mais diversificadas e importantes escritoras que o Brasil já produziu.
Dramaturga,
romancista, poetisa, Stella Leonardo legou à posteridade uma vasta obra e tinha
um vasto coração. Foi, durante muitos anos, Secretária Geral da União
Brasileira de Escritores –RJ e não se cansada de ler originais, escrever
orelhas, segundo ela, asas, conforme aprendera com Homero Homem, e prefácios de
livros, apesar de também dedicar-se à realização de sua extensa obra que
mereceu elogios de um dos nossos maiores poetas. Seu nome: Carlos Drummond de
Andrade. [1]
Idealizou o Projeto Brasil. Desse Projeto,
publicou em torno de 56 livros.
Stella, além de ter sido uma estudiosa da
literatura, era pesquisadora de várias línguas, além de também debruçar-se no
estudo do folclore e da história do Brasil.
Recebeu vários prêmios literários, inclusive
no exterior.
Participou também das famosas reuniões na
casa de Plínio Doyle: os Sabadoyles.
Praticou o que chamamos de sororidade.
De Stella, podíamos falar muito mais. Porém
é preciso ouvir a voz de sua Poesia, ainda mais nestes tempos de tanta
desesperança e de tamanha intolerância com as diferenças; de ataques aos povos
originários, de destruição do meio ambiente; de poluição das águas, boa parte
delas outrora potáveis, outrora sinônimas da vida. Um detalhe: a poesia de
Stella trabalha também com a materialidade do poema. No caso, a disposição
tipográfica lembra o vai e vem das águas de um rio onde há mudança, permanência,
fecundidade, acolhimento, aconchego e germinação de vida.
Com
vocês, uma parte de Irmão Índio e Irmã
Água, XII – Terras de Tocantis: Até Sempre:
Adeus, fraterno convívio
dos longínquos araguaias,
dos índios de quatro etnias
das terras de Tocantins
Adeus,
amigos indígenas
do respeito compartido.
Vou-me.
Mais do que visita
alguém que aprendeu saudade
antes mesmo da partida. [2]
[1] Sobre orelhas de livros como asas, essa informação foi
colhida na página 17 de LEONARDOS, Stella. UBE: algumas notas saudadeadas. In: RenovARTE. Revista da União Brasileira
de Escritores, Rio de Janeiro, no. 1, p. 17-26, 2008.
Para a capa da Revista RenovArte foi fotografado, por Marlene Fonseca Lima, o quadro Stella Leonardos, de Israel Pedrosa. A arte da capa da referida revista é de Fernando Teixeira. Tais informações podem ser lidas na própria Revista RenovArte, número 1.
Para a capa da Revista RenovArte foi fotografado, por Marlene Fonseca Lima, o quadro Stella Leonardos, de Israel Pedrosa. A arte da capa da referida revista é de Fernando Teixeira. Tais informações podem ser lidas na própria Revista RenovArte, número 1.
[2] LEONARDOS, Stella. Irmão Índio e Irmã Água. Projeto
Brasil – Água. Goiânia: Kelps, 2010, p. 30.
Fotografamos, para este Blog, tanto a capa da Revista RenovArte quanto a do livro de Stella aqui citado.
Fotografamos, para este Blog, tanto a capa da Revista RenovArte quanto a do livro de Stella aqui citado.
quinta-feira, 25 de abril de 2019
Republicando um capítulo sobre a Revolução dos Cravos (Viva!) de A Mulher do Dia
Capítulo XXI – 25 de Abril de 1974
Amanheceu nos Açores e em todo Portugal. Um dia de sol
e de calor intensos.
Cedo tivemos notícias do Movimento das Forças Armadas
que veio para dar fim à sombria situação política dos últimos 48 anos. Meu avô
seria libertado. Poderíamos viver abertamente como judeus. Ah, tantos sonhos,
tantas esperanças... Eu estava feliz. Muito feliz. Era como se a primavera
estivesse em mim. A força da vida.
Naquele mesmo dia, 25 de Abril de 1974, eu completava
13 anos. Atingia a maioridade religiosa. Há quatro dias, meu pai chegara de Fall River, especialmente para
participar nas comemorações do meu aniversário.
A data tão esperada por mim, por minha família e pela
Confraria da Coroa de David é o dia da retomada da liberdade em meu país.
Através da Rádio Difusão Portuguesa – Açores, recebíamos informações do que se
passava no Continente. A vovó e a mamã, na cozinha a preparar Seudet Mistvá para a festa, não deixavam
de acompanhar, com atenção, as notícias vindas de Lisboa. Eu e meu pai
ajudávamos na arrumação da casa e também não perdíamos nenhum dos fatos
narrados pela RDP -Açores. Todos sabíamos que se o Movimento das Forças Armadas
fosse vitorioso, meu avô sairia da prisão. Finalmente, após dois anos sem
vê-lo, o velho Benjamim retornaria à casa!
A vontade de rever o avô Benjamim era tanta que, tão
logo terminasse a festa dos meus 13 anos, pretendíamos, com as economias da
minha avô e do meu pai, rumar de avião para Lisboa. Porém, através da Rádio,
tomamos ciência de que o tráfego aéreo da capital do país fora encerrado e o
Aeroporto estava ocupado pelas Forças Armadas. Não podíamos partir
imediatamente após a festa. Teríamos de aguardar, em São Miguel, os
acontecimentos. Um após outro, como o passar dos dias.
Havia ainda dúvidas a respeito do sucesso da operação
militar. Corriam boatos desencontrados, contraditórios. Falava-se até mesmo da
prisão do General António de Spínola. Diante da instabilidade dos atos ainda em
processo, parte da população de Lisboa foi às mercearias e aos postos de
gasolina com medo do que pudesse a estar por vir. E apesar dos apelos das
Forças Armadas, que pediam às pessoas para que não saíssem de suas casas, o
apoio popular começava a se fazer presente nas ruas da Baixa lisboeta. Viam-se
cravos e armas lado a lado na cidade das sete colinas; civis e militares a
construir a liberdade em meu país. Jamais se imaginou uma primavera assim em
Portugal. Um verdadeiro assombro!
Desejei imenso estar em Lisboa. Participar naquele
fato que entrava para a História. Lembrei-me da vocação revolucionária dos
Açores. Da tentativa frustrada, em 1829, das forças absolutistas, durante as
lutas liberais, de desembarcar na então Vila da Praia, hoje Praia da Victoria;
da resistência à dominação espanhola; das nossas ilhas que têm por nome aves
que voam tão alto ... Estava tão entretido nos céus e na História dos Açores, a
recordar feitos tão heróicos, quando minha avó tocou em meu ombro esquerdo e
trouxe-me novamente àquele dia de Abril. Num gesto simples, um leve toque de mãos
em meu ombro, a avó Sofia desmanchou meus devaneios e pediu para que eu
ajudasse minha mãe a pôr a mesa. Ainda meio confuso (pois tinha acabado de
voltar à realidade daquele dia), fui até a cozinha pegar os copos, a louça de
porcelana, comprados em Vila Franca do Campo; a toalha branca de linho,
especialmente bordada para a ocasião; os talheres de prata herdados da minha
bisavô materna. Depois de completar essa tarefa, pedi licença e fui até o
quarto. Coloquei a melhor roupa que tinha
e olhei-me no espelho (meu rosto com 13 anos). O rosto daquele que será, a
partir daquela data, um filho do testemunho. Assumirei, diante dos
representantes da Confraria da Coroa de David e da minha família, o compromisso
de manter, estudar e praticar todos os mandamentos da Torá. Uma responsabilidade tão grande quanto... Não ousei dar
prosseguimento à frase. Via-me no meio dos capitães de Abril e do povo
português a libertar o meu país das sombras e do silêncio. Era como se eu
pudesse retomar os sonhos e as vozes daqueles que foram obrigados a calar-se
durante dias, meses, anos, séculos e séculos a partir do decreto de expulsão,
assinado por D. Manuel, o mesmo soberano, o monarca que teve o seu nome gravado
na memória da História dos Descobrimentos, da construção dos Jerônimos e da
Torre de Belém com a alcunha de o Venturoso.
Ah, Dom Manuel, quantas famílias dizimastes? Oh, vossa
Alteza, a quantas crianças, por força da vossa palavra empenhada, negastes o
passado, as raízes, as origens, a mãe e o pai? Ah, tanta morte anunciada!
Tantos sonhos desmanchados em meio à imensa diáspora!
Ah, como gostaria que o avô Benjamim estivesse aqui...
Foi ele quem me deu os Cinco Livros de Moisés que estão hoje aqui sobre a mesa
diante do espelho. Os Cinco Livros de Moisés ou Pentateuco.
Meu pai chama-me à sala. É que Medeiros e Raposo
acabaram de chegar. Medeiros, Raposo e suas respectivas senhoras, Dona Maria do
Carmo e Dona Maria Arminda.
Minha avó e
minha mãe convidam-nos a sentarmo-nos à mesa. Depois de estarmos em nossos
lugares, meu pai passa a palavra a Medeiros, o responsável por minha educação
religiosa, na sua ausência e na ausência do meu avô. Medeiros pede para que eu
dê início à leitura da Torá. Abro o
livro sagrado na página previamente escolhida e começo a ler, em hebraico, o Shemot ou Êxodo, 3, 1-6:
Um anjo de D’us apareceu a (Moisés)
no centro de um fogo, no meio de um espinheiro. Ao olhar (Moisés) percebeu que
o arbusto estava em chamas, mas não estava sendo consumido. Moisés disse (para
si mesmo): “Eu devo ir até lá e investigar este fenômeno maravilhoso. Por que o
arbusto não queima?”
Quando D’us viu que (Moisés) estava
indo para investigar, Ele o chamou do meio do arbusto.
“Moisés, Moisés!”, Ele disse.
“Eis-me aqui”, replicou (Moisés).
“Não chegues mais perto”, disse
(D’us). “Tira teus sapatos de teus pés. O lugar sobre o qual tu estás é chão
sagrado.”
(D’us então) disse: “Eu sou o D’us
de teu pai, o D’us de Abraão, D’us de Issac, e D’us de Jacob.
Meus olhos
enchem-se de lágrimas. Ouço cada uma das palavras lidas por mim em hebraico. Eu
as absorvo, eu as compreendo. E através da leitura, aproximo-me, sinto-me parte
daqueles que, apesar das perseguições, dos editos, das fogueiras, dos
banimentos perseveraram e preservaram, por meio de atos diários, cotidianos,
sua identidade. Sim, eu sabia que estava a contribuir para resgatar uma
tradição, um modo de vida arrancado à força dos que vieram antes de mim. Sim,
eu sabia. Eu sei.
Assim que termino a leitura, recebo beijos da avó
Sofia e da mamã Raquel. Meu pai, o Medeiros e o Raposo dão-me um forte abraço.
Suas esposas cumprimentam-me com carinho. Após essas demonstrações de
contentamento, damos início à refeição. Uma refeição completa a base de pão e
carne, usualmente preparada e servida no Bar
Mistvá pelas famílias judaicas. Quando terminamos, Medeiros recita Bercet Hamazon, a Benção das Graças, e
meu pai pronuncia o agradecimento: Baruch
shepetaráni meônesh halazê.
Naquele dia, os Medeiros e os Raposo permaneceram até
bem tarde lá em casa. Ficamos, todos juntos, a conversar sobre os destinos de
Portugal, das nossas famílias e da Confraria da Coroa de David.
Àquela altura, o Prof. Marcello Caetano havia passado
o poder às mãos do General Spínola. Uma bandeira branca foi erguida no Quartel
do Carmo. Tínhamos muitas esperanças. Sonhos de liberdade e saudades de meu
avô. Tantas saudades que minha avó teve a ideia de ir até o porto de Ponta
Delgada para pegar o Funchal e seguir por mar em direção a Lisboa. Eu me
ofereci para ir com ela. Queria muito rever meu avô.
Naquele 25 de Abril de 1974, havia-me tornado um
homem. Seria, daqui por diante, responsável pelos meus próprios atos, pelo meu
caminho, um caminho traçado bem antes de mim.
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