Assisti a “Roma” com minha filha Susana.
Antes disso, pensei que
o filme se passava na famosa cidade italiana. - Não, me disse a Susana. - É um filme que se passa na Cidade do México,
num bairro que se chama Roma.
“Roma”, de Alfonso Cuarón,
protagonizado por Yalitza Aparicio, é, segundo o El País Brasil, “um filme sobre memórias que tem a casa como
protagonista”. [1]Conforme
esse mesmo jornal, na altura em que o filme ganhou o Leão de Ouro, no último
festival de Veneza, Alfonso Cuáron o dedicou a Libo, a pessoa que cuidou dele
quando ele era criança e é em Libo que Cleo foi baseada. [2]
Contudo, uma obra de arte está aberta para várias leituras e aqui apresento a
que tive quando e depois que assisti ao filme nestes tempos sombrios que estamos
vivendo.
O filme que assisti é denso, com exposição de
violências quase silenciosas (a Susana chamou de violência calada), mas
constantemente presentes no dia a dia, faça chuva, faça sol, e suas cenas,
apesar de em preto e branco, são claras e essa clareza chega a arder a vista e
destaca aspectos da engrenagem que muitos chamam de rotina, mas que podemos
chamar de desvelamento de explorações de seres humanos por seres humanos, pois
tal rotina não tem nada de natural e procura transformar pessoas em seres que
trabalham e ponto, como se todas as pessoas não tivessem sonhos, anseios e
vontade de transcender, de ir além, de construir projetos, de existir.
“Roma”, nestes tempos
sombrios, é extremamente necessário, porque expõe, escancara, desenha, como se
diz hoje, várias faces de opressões de gênero, de raça, de classe. Só não vê
quem não quer ou se nega a assisti-lo.
O filme se passa nos
anos 70, no México, e é uma película em preto e branco, evocando um passado,
como as antigas fotografias que algumas ou alguns de nós guardamos em álbuns, como também simboliza a falta de
perspectiva de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade sócio-econômica
e que, no referido filme, são descendentes de habitantes originários daquela
terra e que foram, muitas delas e muitos deles, dizimados e as/os que
conseguiram sobreviver foram - e muitos ainda são como Cleo - rechaçados e
estigmatizados em seu próprio país que só lhes dá o direito de se contentarem
com um papel que, nas sociedades capitalistas, é entendido como subalterno num
mundo que mais parece um simulacro de um sonho do que poderia ser a VIDA. Já para Lucas Salgado, a crítica social presente no filme e a opção
pela filmagem em preto e branco seriam referências ao neorealismo italiano,
mais especificamente a “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini. Ou seja, a
presença da Itália, no filme, seria bem maior do que a mera referência a um
bairro homônimo à capital italiana. [3]
O filme é também um
alerta a respeito da presença cotidiana da desigualdade. Lembro-me da cena que
abre o filme: uma imagem de azulejos. Eles estão sendo lavados, não sabemos
ainda por quem. Contudo, os azulejos aparentemente parecem fazer parte de uma
parede, mas, depois, vemos que compõem o chão de uma área que está sendo lavada,
repito, não sabemos por quem, mas o movimento que é feito da água com sabão se
assemelha ao vai e vem das ondas do mar que, mais tarde, terão papel
fundamental na narrativa de um filme que também é uma crítica contundente ao
machismo, ao colonialismo e que tem como protagonista uma personagem que é
chamada de Cleo e que trabalha como babá e empregada doméstica. Porém, voltemos
à imagem dos azulejos que compõem a cena inicial. Nela, como num espelho, há o
reflexo do céu e podemos ver a imagem de um avião que também estará presente em
algumas outras cenas da película. Todavia, tal visão, não nos dá uma sensação
de possibilidade de mudança, de fuga. Acho que funciona mais como um dado que
nos ajuda a desnaturalizar aquelas imagens que aparecem no filme como a nos
lembrar que o natural no ser humano é o cultural e que a existência de
situações de opressão são produtos de um sistema criado por seres humanos que
procuram naturalizar as desigualdades para mantê-las. Vale lembrar que há uma
série de imagens que aparentam ser espelhos em “Roma” que, curiosamente, é um
nome que, se formos ler de trás para a frente - como no reflexo de um espelho -
se transforma na palavra Amor, embora o Amor, neste filme, esteja muito
condicionado ao recorte de raça e de classe. Sobre o amor, no sentido de amor
ao próximo, há uma distinção nítida e mesmo forte entre pessoas de diferentes
extratos sociais (embora as crianças não estejam plenamente inseridas naqueles
códigos de conduta e não façam necessariamente tal distinção), naquela
película, o que também, infelizmente, encontramos no Brasil e, através daquelas
cenas passadas no México, podemos identificar situações de desigualdade e de
alienação vividas aqui também como a diminuta presença de pessoas de extratos
sociais menos favorecidos, por exemplo, em anúncios veiculados na tv, assim
como a prevalência de pessoas de pele mais clara na mídia tradicional e nos
postos de poder, no sentido mais usual do termo poder. E por meio do México,
país da América Latina, assim como o Brasil, como num espelho, vemos a face da
desigualdade do nosso país que, para nós, brasileiras e brasileiros, é citado
indiretamente no filme por meio de um cartaz da copa do Mundo do México, de
1970, ganha pelo Brasil, num período de grande e severa repressão e ditadura em
nosso país, o governo Médici de triste e cruel lembrança.
Em “Roma”, Cleo, apelido curioso para a
protagonista de um filme chamado “Roma” e que expõe situações machistas que
perpassam classes sociais (como na cena em que a patroa de Cleo fala sobre a
solidão vivida por nós, mulheres) lembra o nome da rainha egípcia Cleopatra,
(do grego: Kleos, “glória”) numa Roma que apesar dos esforços - das elites de
raízes estrangeiras - de esconder ou de transformar em máquinas de trabalho
pessoas provenientes de povos originários não conseguem esconder tais
desigualdades daqueles que assistem ao filme. Lembrei-me também da frase de
Walter Benjamin que diz que todo documento de cultura é também um documento de
barbárie. Acho que essa frase de Benjamin perpassa “Roma”, assim como algumas passagens
de O Segundo Sexo, de Simone de
Beauvoir, que, em 2019, completa 70 anos de publicação.
Num tempo de levantamento de um muro na
fronteira entre os Estados Unidos e o México; de acirramento de desigualdades sócio-econômicas
pela ascensão da extrema-direita em várias partes do mundo; de ataques aos
direitos trabalhistas e à previdência social; de críticas ao feminismo e às
feministas; de manutenção de formas de colonialismo e de fomento ao racismo, é
muito bem-vindo um filme como “Roma”, que nos provoca um efeito de estranhamento,
como o teatro de Brecht, e que nos ajuda a despertar para a necessidade mais do
que premente de igualdade, de fraternidade e, por que não?, de construção de um
mundo livre de opressões.
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/10/cultura/1544462338_986627.html?%3Fid_externo_rsoc=FB_BR_CM&fbclid=IwAR12tpdWwIeJ7NRTpWn_GOI1hBumgmHTKxM7IFomrh2BxETlcxRLijnmkSs
Acesso em 24/02/2019
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/10/cultura/1544462338_986627.html?%3Fid_externo_rsoc=FB_BR_CM&fbclid=IwAR12tpdWwIeJ7NRTpWn_GOI1hBumgmHTKxM7IFomrh2BxETlcxRLijnmkSs
Acesso em 24/02/2019.
Acesso em 23/02/2019.