quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Um pequeno relato sobre atividades de Crítica Textual no Brasil em 2014 e algumas perspectivas na área para 2015

Logo nos primeiros meses de 2014, na imprensa chamada por muitos de tradicional e na Internet, foram travadas discussões sobre uma edição modernizada de um dos mais famosos contos de Machado de Assis: “O Alienista”. Falou-se em original, em texto autoral, em é “preciso manter o sentido do texto,” em que “estavam maculando a obra de um dos maiores escritores da língua portuguesa,” mas poucos foram os que falaram de Crítica Textual, a disciplina que estuda a história da transmissão de textos e que nos ajuda a preparar uma edição conforme a última redação materializada pelo autor – no caso de “O Alienista” – e, no caso de obras que não tenham mais originais, nos fornece as diretrizes para a preparação de uma edição que também leve em conta a história da transmissão dos textos e o exame dos apógrafos que chegaram até nós ou por alguém ter escrito sobre eles ou por que eles foram conservados e se encontram em alguma biblioteca ainda nos dias de hoje ou algum dia – mas não atualmente - puderam ser encontrados em suas prateleiras. Contudo, era e é preciso falar de Crítica Textual, pois falando de Crítica Textual, quebra-se a ilusão de que os textos, as obras são imunes, também quanto à sua transmissão,  à passagem do tempo e à ação dos seres humanos. Quebrando tal ilusão, a saúde do que se fala, do que se diz, do que se escreve sobre língua e sobre literatura agradece e a historicidade do processo de construção, edição e recepção da obra passa a ser levada em conta por aqueles que são leitores, estudiosos, produtores, transmissores dessas obras.
Quem trabalha com Crítica Textual sabe que à medida que os textos são transmitidos, eles são também modificados. Imaginem vocês textos muito antigos e “O Alienista” não é tão antigo assim. A última vez – que se tem notícia – que ele foi publicado em vida de Machado de Assis foi em 1882. De lá para cá, muita água rolou por debaixo da ponte. Muitos conheceram a história da Casa Verde de Itaguaí, de D. Evarista, de Crispim Soares e do douto Simão Bacamarte, porém não necessariamente com todas as palavras que constam na última versão que Machado deu para essa história. Sim, amigos e amigas, os textos devem ser restaurados como os monumentos, os afrescos, as pinturas, observando e conservando, sempre que possível, as marcas de sua transmissão – que são produto também de estratégias editoriais - ao longo do tempo, das páginas e dos suportes que as transportam até nós.
Apesar do pouco ou quase nada que se falou na imprensa em geral sobre Crítica Textual, 2014, em termos de Crítica Textual no meio universitário brasileiro e não apenas nele, foi um ano de manutenção de conquistas longamente batalhadas, mas também de franco crescimento dessa disciplina. Vale ressaltar que, nesta postagem, falaremos sobre algumas das atividades realizadas em Crítica Textual, em 2014, no Brasil. Infelizmente, não falaremos de todas elas, mas das que tivemos conhecimento e das que estive de uma forma ou de outra envolvida.
Vamos a elas:   
No primeiro semestre deste ano, mais especificamente em maio, foi mantida com sucesso a Semana de Filologia na USP e, em julho, o Grupo de Trabalho do GT de Crítica Textual, no Encontro da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística), em Florianópolis, contou com a participação ativa de pesquisadores de várias partes do país e, nesse encontro, no âmbito do GT, foi aprovada a criação da Revista de Crítica Textual, com periodicidade semestral, e a publicação de um livro cujo tema será Crítica Textual. Tais publicações sairão em 2015 e esperamos que a revista tenha vida longa.
Em agosto, foi realizado, em Salvador, na UNEB, o Seminário de Estudos Filológicos, dessa vez intitulado: Entre o Texto e o Discurso.  Esse evento não tem como tema apenas a Crítica Textual, mas sim a Filologia no sentido inclusive de Linguística Histórica. Além disso, fez parte do temário desse evento a própria Análise de Discurso em consonância com estudos filológicos. 
Ainda em 2014, concluímos – em companhia da pesquisadora e professora da UERJ Carmem Negreiros – o primeiro volume de uma edição crítica com viés genético de Recordações do escrivão Isaias Caminha, romance de Lima Barreto.  [1] Esse volume foi aceito para publicação pela EDUSP e deverá chegar às livrarias em 2015.  
Além disso, no início de 2014, foi defendida na UFF, por Viviane Arena Figueiredo, como tese de Doutorado, uma edição crítica de Ânsia eterna, reunião de contos de Júlia Lopes de Almeida e, em setembro, mais precisamente no dia do aniversário de falecimento de Machado de Assis, foi lançada na livraria da EDUFF, em Icaraí, Niterói (RJ), uma edição crítica de Dom Casmurro, preparada por um dos maiores críticos textuais nascidos no Brasil. Seu nome: Maximiano de Carvalho e Silva, Professor Emérito da Universidade Federal Fluminense. 
Em outubro, tivemos o II Seminário Autores e Livros: gênese e transmissão textuais, promovido pelo Laboratório de Ecdótica da UFF, o LABEC-UFF. Desse evento, sairão os Anais, em 2015, como também será postado no Youtube o que ficou registrado em vídeo das atividades de algumas de suas mesas. Inclusive, tivemos, nesse evento, uma mesa com escritores.
E mais: em 2014, um grupo de pesquisadores – a maior parte é de professores de universidades brasileiras - que trabalha com Crítica Textual foi chamado - por iniciativa da também pesquisadora Maria Olívia Saraiva e com a anuência da Divisão de Pesquisa e do Diretor daquela Fundação - para formarem um Grupo de Pesquisa em Crítica Textual na Biblioteca Nacional. Tal Grupo já está cadastrado no CNPq e já iniciou suas atividades de investigação.
 Não podemos esquecer que a Biblioteca Nacional é um grande centro irradiador de cultura e que a criação de um Grupo de Pesquisa de Crítica Textual em suas fileiras – fileiras essas por onde já passaram grandes filólogos - deve contribuir para a divulgação e valorização dessa disciplina não só nas universidades brasileiras como também fora delas.
Portanto, o ano de 2014 foi mais do que positivo em termos de crescimento da Crítica Textual em nosso país. E valorizar a Crítica Textual, assim como conhecê-la melhor, nos ajuda a perceber e a compreender que a mudança é o normal na vida, que somos seres que carregamos histórias que muitas vezes nem sequer conhecemos e que à medida que são transmitidas – e como são transmitidas, transformadas, recontadas ou silenciadas- são difundidas. Somos muito mais do que a percepção consciente que temos de nós mesmos. Trazemos conosco muitos tempos, lugares que algumas vezes vislumbramos quando olhamos o horizonte que algumas vezes desponta à nossa frente quando também abrimos um livro, uma publicação ou simplesmente olhamos à nossa volta.
Que 2015 seja um ano de muitos horizontes para a Crítica Textual e para todos nós e que consigamos realizamos projetos que dão e darão vida à nossa existência! 




[1] Tal edição também contou com a participação das seguintes pesquisadoras (em ordem alfabética): Marina Melo, Patrícia Teixeira e Viviane Arena Figueiredo).

domingo, 30 de novembro de 2014

A Propósito da Literatura Escrita Por Mulheres: Um capítulo de A Mulher do Dia

Capítulo XXXIV – Um encontro, um destino: uma âncora, uma
pedra no meio do caminho.

Onde estará João? Onde andará o meu amigo? Em que praia, ó Deus? Em que terras, ó Pai, andará o meu amigo? Qual será o seu destino? Qual será, ó Deus, o meu destino?
A última vez que nos falamos via e-mail, João estava saindo de Roma em direção à Grécia. Será que chegou a Jerusalém? Eu não sei.
Vou terminar de escrever a Conferência para o Congresso sobre Antero de Quental, que será realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mas não deixo de pensar em João e no destino. João e o destino.
Por quanto tempo estive ausente? Por tanto tempo me ceguei com as próprias mãos como Édipo perdido nas entranhas do destino? Cavernas imaginárias. Leitos de rios secos, esquecidos, águas de Letes, mas os veios, agora vias subterrâneas, permanecem, desviando-me do caminho. O esquecimento que mina, dia após dia, a resistência solitária dos que não  aceitam a morte em vida.
Desvio os olhos e, por um momento, não saberei que trago em mim muitos cadáveres. Corpos. Vontades. Desejos. Da loba. Sim, da loba. Mulher subterrânea. Mulher presa por amarras invisíveis. E a loba? Sim, da loba, resta a estátua. Imóvel. A morte. Se eu não penso, ela não existe? A morte.
Haverá uma chance? Haverá uma única chance que seja?
Oh! Olhem todas as pessoas solitárias, pede a canção que toca na rádio Renascença.
Oh! Look all the lonely people.
Solitários. Todos nós. Irremediavelmente solitários e unidos pela linguagem. Mundos inconscientes. Plataformas prontas a serem utilizadas, antecedem a partida, a chegada. Horizontes previamente violados. Índias carregando no ventre os filhos do descobrimento. Os filhos do.
Por acaso, as Américas, três ao todo, existiam antes de serem descobertas pelo Velho Mundo?
 O Novo Mundo. Paisagens novas decifradas por olhares velhos. Muito velhos. Extremamente velhos. Quase cegos por espelhar o que esperavam ver.
Os descobridores. Os descobridores carregavam em si caravelas naufragadas em lembranças e imagens. Haverá esperança? Haverá uma única esperança que seja?
O que pensou Antero no seu último momento? O que pensou o poeta das Odes em frente, bem em frente, ao Convento da Esperança? Perguntas, perguntas e mais perguntas que trabalhos acadêmicos não poderão responder. Nunca. Jamais. Apesar de toda a teoria. Apesar de toda a crítica e palavras, palavras, palavras que repetem o que não podem mais dizer. Por quê?
Uma âncora. Uma âncora presa à parede, alçada do fundo de um fundo de um mar imaginário. Mar de pensamentos, pesadelos represados, alucinados.
 Uma linguagem. Sempre a linguagem. A linguagem liga a âncora à esperança. A âncora presa à parede da Esperança.
 Um convento. Um convento que tem por nome a Esperança. Portas e janelas fechadas que se fecham e que se abrem para portas e janelas interiores. Castelo interior e moradas.
Haverá saída? Haverá uma única saída que seja? Fora a morte. A morte. (Não. A morte não é uma saída).
O dia depois de outro dia. Sempre novo. E porque novo, sempre igual ao novo. Ideia do novo. O sol amarelo. Claridade, manhã que se renova em promessas de amanhã.
 Uma promessa. Uma esperança e uma âncora presa à parede. Antero e a esperança. A esperança desesperada. Uma esperança. Talvez, a única. Talvez uma pedra no meio do caminho de um poeta.
Em frente, bem em frente ao Convento da Esperança, na bela cidade de Ponta Delgada, Açores, o poeta sentado no banco, embaixo de uma âncora. Veleiros, velas partidas, carcaças de baleias, espumas que saem da boca dos afogados. E a âncora. A âncora a significar o quê? Uma saída?
Haverá uma chance? Haverá uma única chance que seja?
Recolho os papéis: “A presença da antiguidade greco-latina na poesia de Antero de Quental”.
Preciso sair. Não só abrir as janelas, escancarar as cortinas, mas sair. Já é tempo. Já é tempo de ir à Universidade. Estão a me esperar. O Congresso começa às 9:30.
Escovo os cabelos, ajeito a roupa, um tailler vermelho, comprado num shopping em São Paulo, e dirijo-me à Faculdade. Haverá tempo?
Abro as janelas e escancaro as cortinas. Penso, observando Lisboa, como é bela a cidade que promete um passado a cada esquina. Uma esquina. Meus olhos vislumbram. Outra esquina. E mais além, um pouco mais além, outra esquina, dessa vez iluminada como um dia de sol.
Meus olhos. Meus olhos passeiam pela capital de um Portugal europeu. Pós-74. Pós-86. Pós-Brasil, África, Índias Ocidentais, Orientais. E meu coração tropical não entende nada ou entende muito do que vê pelas ruas. Pelas ruas de Lisboa, acho-me e perco-me e projeto diferentes imagens da imagem que tenho de mim. Dos iguais a mim. Dos que têm a mesma procedência. Do Brasil. De um Brasil. De um sonho de Brasil. Talvez o Brasil que eu trago em mim. Uma representação do Brasil. Os jornais falam de brasileiros na Costa da Caparica: – Brasileiros gostam de samba e futebol. Brasileiros. Há tantos brasis e brasileiros. E somos todos anjos caídos na cidade hoje. Lisboa, sim, Lisboa. Meus olhos lhe devolvem o que vejo nas suas e nas minhas entranhas.
Os olhos. Já diziam: janelas da alma.
Olho-me no espelho e parto em direção à Faculdade.
Agora, meus pés andam pelas ruas anteriormente vistas da janela. Ando, passo a passo, até a Praça Marquês de Pombal. Pego o metrô até o Campo Grande.
Vou andando. Saboreio com os meus olhos, com o meu olfato, com o meu tato, com o meu corpo todo aquela paisagem e dou asas, dentro de mim mesma, ao desejo de ver, cada vez mais, as faces, as ruas, as casas, as esquinas de Lisboa. A menina que passa. A senhora vestida de preto, com o lenço preto sobre os cabelos cortados bem curtos.
Há fome nos meus olhos, mas uma fome despertada pela vontade de olhar, ver, reter, tocar, compreender aquela paisagem toda ela ancestral, antiga, dos meus avós que atravessaram mares e dobraram as suas espinhas, outrora rijas, nas terras do Brasil. Mar adentro. No meu sonho, cabe um mar de esperança. Verde, neste momento azul, como o azul do céu de Lisboa. A terra prometida. Canaã. Talvez Portugal. Talvez o Brasil e o horizonte à espera, sempre à espera, país de longas esperas. Intermináveis esperas intermináveis.
Vou andando. Avisto a Clássica de Letras. Terra à vista. E o Arquivo Nacional da Torre do Tombo ao fundo.
Vou andando. Revejo rostos conhecidos. Um professor de Belo Horizonte; duas professoras da Unb. Manuel Monteiro, da Federal da Bahia, cumprimenta-me com entusiasmo. Um Congresso todo sobre Antero. Estava mais do que na hora. É mais do que oportuno.
Duas monitoras recebem-me com atenção. Uma diz: Seja bem vinda Senhora Doutora. Outra pergunta: A Senhora Doutora já pegou a sua pasta? Digo que não e sou levada à sala em que estão distribuindo o material do evento: pasta, bloco, caneta, caderno de resumos, crachá com etiqueta em que posso ler o meu nome. Meu nome. Eliana. Depois de tantos anos, reconheço, sob o meu nome, a mim mesma. Eu, Eliana.
Não digo as últimas palavras em voz alta. Digo-as para mim. Para o meu deleite e prazer.
Há luz nessa manhã. Há luz nos meus olhos. E, por detrás dessa luz, há muitas trevas. Âncoras, esperanças, um poeta caído em frente à Esperança.
Alguém me chama. Uma voz, uma voz que não me é estranha. E quando me viro, vejo o rosto de um homem, que eu conheço de algum lugar.
Ele se adianta e diz: – Foi em São Paulo. Meus papéis caíram em plena Avenida Paulista e tu ajudaste-me a apanhá-los do chão.
Agora me lembro daqueles olhos. Negros como o mar nos braços da noite.
Algo naquele homem me atrai. Seu olhar tem em mim o efeito do canto das sereias aos ouvidos dos antigos navegantes. Seu nome, ele me diz, Eduardo Machado, é como o perfume derramado ...
Ele me olha e parece enxergar-me por dentro e levar consigo a minha vontade, como fazia a Blimunda, do Memorial do Convento, de Saramago. E eu tenho medo, muito medo de que o meu olhar traduza o que sinto naquele momento. Minha vontade. A vontade que eu tenho é de me deixar levar e levá-lo comigo. Beijar-lhe a boca e deitar-me com ele. E fazê-lo sussurrar, falar macio, gemer. Uma mulher tem poderes. Sim, eu os sei. Eu sei.
Eduardo me olha com os olhos negros que me parecem levar até uma espécie de paraíso. Elegias para sempre intermináveis. O verão no corpo, em mim toda.
Meus seios sentem-se acariciados pelo seu olhar, numa promessa de jardins para sempre suspensos. Há fontes de águas milenares correndo em mim.
Eduardo compreende, olha-me e não diz palavra alguma.
Saímos os dois juntos e descemos as escadarias da Clássica de Lisboa. E bem em frente àquele prédio, sem havermos dito mais nada, nos beijamos como se houvéssemos nos reencontrado após uma grande ausência, um longo sono, uma longa viagem. Uma distância que não mais existe.
Há outras linguagens, eu sei. Meu corpo sabe e agradece.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A história: um caleidoscópio

  


                      

        Recentemente, em setembro deste ano de 2014, foi publicado Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, romance que o autor José Saramago, falecido em 18 de junho de 2010, deixou incompleto.  Sobre esse lançamento, saiu um artigo no número 1147 do Jornal de Letras, Artes e Ideias, quinzenário português dirigido por José Carlos de Vasconcelos. O artigo é de Carlos Reis, Professor da Universidade de Coimbra e um dos maiores estudiosos da obra de José Saramago como também de Eça de Queirós. Pois bem, esse artigo recebeu o título sugestivo de A sobrevida da palavra e a leitura de suas páginas faz com que tenhamos mais vontade de ler o novo romance de José Saramago.
         Ainda não li ( vou ler) Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, mas, acabei de reler a História do cerco de Lisboa.
         Em a História do cerco de Lisboa, além do virtuosismo do estilo do autor que consegue que tenhamos acesso a imagens sobrepostas e mesmo paralelas em uma única passagem, nos apresenta tempos históricos que convivem em uma mesma cidade a partir do exercício de escrita e de elaboração do enredo e da narrativa de Raimundo Silva, um revisor que se torna escritor a partir de um pedido feito pela mulher por quem ele se apaixona. A aproximação entre os dois dar-se-á a partir de um ato ousado do revisor que substitui um sim por um não num texto sobre a história do cerco de Lisboa que ele estava revisando.  O nome da mulher: Maria Sara. Nome esse não por acaso formado por dois nomes fundamentalmente importantes em duas das culturas que, juntamente com a muçulmana, conviveram na Península Ibérica durante muitos anos: a cristã e a judaica. E nesse romance de Saramago ainda podemos ouvir a voz do almuadem a ecoar na Lisboa moura que permanece na Lisboa dos nossos dias, basta virarmos uma esquina e termos olhos para vê-la e ouvidos para ouvi-la. Os tempos, as narrativas, as personagens se encontram numa convivência hoje construída pelas palavras do autor ou dos autores José Saramago e Raimundo Silva: Raimundo, Mogueime, Maria Sara, Ouroana e até mesmo uma outra história, um outro autor e um outro personagem, impossíveis de não serem lembrados a partir da leitura desse romance de Saramago. Estamos falando de de A Ilustre casa de Ramires, Eça de Queirós e Gonçalo Mendes Ramires, em que os tempos se entrelaçam, as histórias também e, andando no Rio, vejo a cidade com outros olhos.  

terça-feira, 30 de setembro de 2014

UM EXERCÍCIO DE INTERDISCIPLINARIDADE

II SEMINÁRIO AUTORES E LIVROS: GÊNESE E TRANSMISSÃO TEXTUAIS[1]

Temos consciência de que a realização de eventos como O II Seminário Autores e Livros: Gênese e Transmissão Textuais que acontecerá no Instituto de Letras da UFF, nos dias 1, 2 e 3 de outubro, é muito importante para a Crítica Textual e para todos os que participaram e que participam na defesa da institucionalização da Crítica Textual como disciplina obrigatória nos currículos de Letras do nosso país, disciplina essa que veio a ser obrigatória nos currículos dos cursos de graduação em Letras da UFF, graças a ação de Maximiano de Carvalho e Silva, um dos maiores teóricos da Crítica Textual em língua portuguesa, que, no dia 29 de setembro, lançou uma edição crítica de Dom Casmurro, romance de Machado de Assis, o mesmo autor que motivou a criação da Comissão Machado de Assis, no final da década de 50, no Brasil.
 A Crítica Textual é disciplina fundamental tanto para estudos literários quanto para estudos de língua que tenham textos escritos como suas bases. E o que vemos hoje é que são poucas as universidades no Brasil que a tem como disciplina obrigatória na graduação e como linha de pesquisa na Pós-graduação.
Os estudos em que trabalham com textos no Brasil – não só na área de Letras – precisam da Crítica Textual para serem mais seguros e terem maior credibilidade e – ouso dizer – terem bases científicas mais confiáveis.
Num tempo em que é tão demandada a presença da interdisciplinridade nos estudos universitários, a Crítica Textual que, pela especificidade dos trabalhos desenvolvidos nessa área, trabalha com a interdisciplinaridade e com algo fundamental para as ciências humanas que é a historicidade, não pode permanecer nos bastidores da academia.
Sim, passamos por tempos difíceis. Tempos em que não era de bom tom lembrar que somos seres históricos e que a mudança é a norma enquanto há vida.   
A Crítica Textual trabalha com o conceito de mudança e trabalhar com a Crítica Textual nos faz perceber que tudo muda, até mesmo os textos que são transmitidos ao longo do tempo.
Hoje vivemos uma época que clama por mudanças e em que o pedido de mudança vai às ruas e nos chama: vem pra rua vem.
É difícil olhar e não ver. Ouvir e não entender. Basta olharmos para nós mesmos e para as transformações que ocorrem em nossos próprios corpos ou nos lembrarmos daqueles que estiveram aqui e não estão mais entre nós.
A mudança é norma na vida.
A Crítica Textual, no seu trabalho de estudo da transmissão textual e no seu trabalho de edição crítica de textos, nos permite assumir a perspectiva da mudança e da historicidade.
Neste evento, realizado pelo Laboratório de Ecdótica da UFF, o Labec-UFF, teremos a oportunidade de entramos em contato com vários trabalhos da área, assim como com trabalhos que dialogam com a Crítica Textual. Além disso, entraremos também em contato com depoimentos de escritores e com depoimentos de alunos da Pós e da Graduação.
Vale lembrar que os trabalhos aqui reunidos nos permitem fazer um passeio pelos campos da Crítica Textual da Antiguidade até os dias de hoje.
 E, se me permitem, vou lhes contar um segredo: este evento tem início no dia 1 de outubro em homenagem a um grande amante dos livros que nasceu nesse dia. O nome dele: Plínio Doyle, o fundador do Museu Arquivo de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Plinio Doyle foi um dos criadores dos Sabadoyles, reuniões realizadas em sua casa, aos sábados, que congregavam escritores, como Carlos Drummond de Andrade, estudiosos de literatura ou simplesmente pessoas que apreciavam literatura ou que tinham vontade de conviver com os escritores a que lá acorriam.
Certa vez, perguntaram a Drummond a respeito da longevidade dos Sabadoyles e o Poeta respondeu: milagre do Plínio.
Esperamos também que os Seminários de Crítica Textual tenham vida longa.
Que assim seja!
E este seja, nós sabemos, depende - entre outros fatores - da ação dos seres humanos e de cada vez mais a Universidade assuma o seu caráter de Universidade, conseguindo abrigar pensamos divergentes, convergentes, na construção da liberdade da busca do saber e da construção de um mundo mais justo, em que todos tenham o direito de estudar e de viver.   

 



[1] A programação completa do evento está em: www.labec.uff.br

sábado, 30 de agosto de 2014

Um romance em construção: Sobre a natureza das coisas


                                                  I

                                          O Cavaleiro
     

                                                              Prepare o seu coração
                                                            Pras coisas que eu vou contar
                                                                “Disparada”, Geraldo Vandré
    


Ele veio lá do sertão. Do interior da Paraíba, ele veio. De um lugar, cujo nome não inspirava futuro benfazejo: Buracos, no Nordeste brasileiro. Seca, sol a pique, xique-xique, mandacaru, urubus à espreita, esqueleto de gado secando a céu aberto, boca aberta num sorriso grande da morte (ou estaria o gado zombando da própria sorte?).
 Às vezes, para beber água, era preciso cavar, cavar a terra ou espremer bem espremida a raiz de uma planta que continha o líquido precioso, necessário, imprescindível, mas raro naquela região esquecida por Deus e pelas autoridades governamentais desse país a que chamamos nosso. Nosso? Deles? E o direito à vida? Direito? Parece termo e conceito riscados do palavreado do dia a dia daquela gente. Injustiça, essa, sim, estava presente e era certeira, quase uma companheira. E, como o filósofo Voltaire dizia, no já mui distante Século das Luzes, injustiça gera injustiça.  
Com os pais, Vital e Francisca, abriu estradas, plantou roças, criou galinha, porco, o que dava para comer. Com estacas, pás e a força de um menino que se fazia homem, apesar do medo, apesar de todo o tempo ainda para crescer, trabalhava, até as seis da tarde, quando o sol quase se recolhia, atrás da colina. Mas, no pouco tempo livre que ele tinha, olhava as letras desenhadas nas tabuletas penduradas nas esparsas mercearias que lá havia, nas feiras, onde os repentistas se apresentavam com palavras que jorravam tão harmoniosas ao som das rabecas, das sanfonas e sonhava. Sonhava em entendê-las, em conhecer seus mistérios, suas melodias, seus ritmos, suas sonoridades, seus sentidos e aqueles, às vezes, longos agrupamentos de frases e de sinais ainda estranhos ao seu entendimento.
Aquele menino inteligente, tão chegado às letras, tinha, curiosamente, recebido o nome de um conhecido poeta grego da antiguidade. Mas como sucedera a esse menino receber tal nome?
A história é a seguinte. Vou lhes contar: 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Como não falar das flores?


Cinquenta anos depois, caminho na Rio Branco, em direção à Cinelândia, no centro do Rio, julho, pouco mais de um ano em que as pessoas voltaram às ruas.
Na minha lembrança, estou no meio da multidão, faço parte dela e meu coração bate forte. Respiro aliviada após anos de exaustão. Estou viva. Sigo em frente.  Não foi à toa que saímos às ruas nos anos 80. Temos um sonho e sonhos, como diz a canção, não envelhecem.  
 Enquanto caminho, lembro-me de uma exposição em que estive presente neste mês, a World Press Photo. Em uma das imagens mais impactantes que compartilhavam aquele espaço, homens, diante do escuro da noite e do mar, tentam estabelecer, por meio de celulares, conexão com parentes distantes. Parecem deuses criadores de estrelas, mas são homens banidos da terra em que nasceram. Porém, suas histórias (ou parte delas) chegam até nós e tenho a impressão de que sempre estiveram tão longe e tão perto de nós. Histórias protegidas da ação do tempo e de determinados tipos de homens e de suas ações pelas mãos de trabalhadores, a quem chamamos fotógrafos, que, como todos os seres humanos, convivem com a arte dentro de si. Porém, uns têm direitos. Outros têm o direito de alimentarem os direitos de alguns. Mais adiante, crianças brincam e não imaginam que seus passos logo logo serão limitados pela lógica do capital. Um pouco à frente, as marcas da passagem de um esqui formam uma espécie de espiral que, apesar de bela, não nos protege da falta luz em Gaza, que ocorre não por um acidente e sim pela ação do homem que continua a ser o lobo do homem. Em Bangladesh, um prédio, cheio de trabalhadores, desaba e mata – assassina - a maior parte deles, não por uma fatalidade, mas por conta da ganância daqueles que exploraram, até a última gota de suor e de sangue, a sua força de trabalho. Mas o abraço que liga duas das pessoas soterradas continua a nos desafiar, a nos comover. São imagens que, como perguntas, nos interrogam.  Que vida é essa que levamos? Como tudo isso ocorreu sem que nada fizéssemos para evitar?
Continuo a caminhar. Nas bancas, revistas apresentam um mundo que, se olharmos ao redor, existe apenas para alguns.
Na rua, um rapaz latino-americano toca um violino que nos surpreende com “O Luar do Sertão”.
        Pessoas olham o relógio e passam como se as nossas obrigações diárias nos protegessem e nos afastassem da vida que nos chama: Vem!    
    


sábado, 21 de junho de 2014

E por falar em palavras: hoje é dia da mídia e dia do intelectual

Em 21 de junho, tem início o inverno no hemisfério sul, assim como o verão no hemisfério norte. Nessa data, marcada pela promessa de frio, para alguns, e de calor, para outros, também comemora-se o dia nacional de controle da asma, o dia da mídia e o dia do intelectual.
Quanto ao intelectual, entre as acepções dessa palavra, presentes no Houaiss, estão as seguintes:

[...] que ou aquele que vive preponderantemente do intelecto, dedicando-se a atividades que requerem um emprego intelectual considerável [...] que ou aquele que demonstra gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes etc. [...] que ou aquele que domina um campo do conhecimento intelectual ou que tem muita cultura geral; erudito, pensador, sábio [...] [1]
Podemos depreender pela leitura desse verbete que o conjunto de pessoas englobado por essa palavra é bem mais amplo do que creem muitos de nós, mortais. Professores, jornalistas, publicitários, cientistas, escritores, crítico literários, críticos textuais, estudantes estão (ou estamos) incluídos nesse grupo, apesar de muitos deles (ou muitos de nós) não se considerarem (ou não nos considerarmos) como tal. Será por que a palavra intelectual ainda é marcada pela atuação de escritores que participaram ativamente na vida pública como era o caso de alguns dos escritores que produziram suas obras no século XIX? Quando digo isso, lembro-me dos nomes de Émile Zola, Antero de Quental e mesmo de Eça de Queirós. Também não precisamos recuar tanto no tempo assim. Basta recordarmos de Simone de Beauvoir e de Jean-Paul Sartre, dois dos mais engajados intelectuais do século XX. Inclusive, é bom lembrar, Sartre estaria aniversariando hoje, 21 de junho. Contudo, neste início do século XXI, a atuação de intelectuais, pelo menos no Brasil, em espaços públicos e acompanhada pela mídia, encontra-se consideravelmente reduzida e a imagem do intelectual engajado em lutas sociais também não vem sendo valorizada, a ponto de escritores e filósofos como Sartre e Beauvoir terem perdido espaço na academia.
Um dos motivos de os intelectuais estarem tão distantes dos e silenciosos nos espaços públicos é que a mídia é bem fechada em nosso país, apesar da Internet que ainda não tem – para a maioria das pessoas – o mesmo grau de confiabilidade que atribuem às emissoras de televisão, aos jornais às revistas. Estamos em uma sociedade que valoriza sobremaneira o espetáculo – o que lembra o título de um livro de Debord. Infelizmente, o que é referendado pela mídia tem valor substantivo para grande parte de nós. Para muitos (mas isso, felizmente, vem mudando), tudo que é veiculado por essas mídias tem status de verdade. Outro motivo é que vivemos sob o acirramento do capitalismo e do enfraquecimento de (e do ataque a)  muitos dos espaços conhecidos como tradicionais de revindicação. Contudo, pelo menos, desde o ano de 2013, com as chamadas jornadas de junho, antecedidas, em 2012, pela longa greve dos servidores públicos – entre eles, professores universitários e funcionários técnico-administrativos de universidades – a situação vem sendo modificada, apesar de que muito ainda deve ser feito, para que a imagem do intelectual se junte novamente a imagem de quem participa ativamente em espaços públicos de luta. Inclusive, há de se pensar (repensar) a distinção entre trabalho intelectual e trabalho manual. E até mesmo a Copa do Mundo de Futebol, neste ano de 2014, vem mostrando, com a vitória de seleções não favoritas, que nada é impossível de ser mudado. Enquanto há jogo (vida), há esperança: o mundo está assim, mas não será assim para sempre.        






[1] HOUAISS, Antônio/ SALLES VILLAR, Mauro de/ MELLO FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O tempo não para e as palavras também


                              
                                                

Não tive ainda oportunidade de assistir ao "Ninfomaníaca II". Por tal motivo, fiz um intervalo de postagens em Crítica & Arte, mas assim que assistir a esse filme de Lars von Trier, escreverei sobre ele. Contudo, como dizia o poeta, o tempo não para e a gente vai se deparando com novas questões, com assuntos, com coisas, com pessoas que nos fazem sair, que nos movem do lugar de conforto ou de desconforto em que vivemos.
Recentemente, iniciaram uma polêmica a respeito de uma edição adaptada – para a língua portuguesa dos nossos dias – de “O Alienista”, conto de Machado de Assis, escritor que viveu a maior partir de seus dias no século XIX.
Como foi dito em um livro que também será tema de nossas postagens, o Machado de Assis: por uma poética da emulação (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013), de João Cezar de Castro Rocha, ensaísta e professor da UERJ, a obra de Machado de Assis – mais a da chamada, inclusive pelo próprio Machado, de segunda fase -  dialoga de maneira particular com a obra de vários autores que publicaram antes dele.  Nas palavras de João Cezar:

[...] enquanto a maior parte dos contemporâneos apurava a audição para captar o último grito da moda, o autor de “Uma visita de Alcibíades” viajou à Itália – mas, como o Camões do soneto, não somente à península. Ele frequentou todas as épocas, como se elas compartilhassem o mesmo instante histórico, definido, não pela diacronia do calendário, mas pela simultaneidade dos momentos de leitura e de escrita. A emulação enseja outro tipo de temporalidade, negando a linearidade e recusando superações irreversíveis: não se trata de promover rupturas traumáticas, mas de contribuir para o enriquecimento do repertório comum, na promessa de sincronia entre épocas e tradições diversas. [...][1]

Esse diálogo é mantido, por exemplo, com a obra de Diderot, citado na Advertência que abre Papéis Avulsos, reunião de contos em que figura “O Alienista”.  E por falar em Diderot, em “O Alienista” há referências ao século XVIII, como a de um dos títulos que abrem um dos capítulos que compõem o referido conto.  Trata-se de O Terror, nome pelo qual ficou conhecido um dos períodos posteriores à tomada da Bastilha, na Revolução Francesa. E o século XVIII também ficou conhecido como uma época em que a razão podia explicar o mundo e conduzi-lo ao progresso.
Para Carlos Nelson Coutinho:

 [...] Na época em que burguesia era a porta-voz do progresso social, seus representantes ideológicos podiam considerar a realidade como um todo racional, cujo conhecimento e consequente domínio eram uma possibilidade aberta à razão humana. [...] [2]

 O Século das Luzes estaria inserido nessa época que, segundo Coutinho, se estenderia até o momento em que a burguesia não mais seria portadora desse progresso, transformando-se em uma classe conservadora e reacionária. [3]
Em relação a “O Alienista”, ele foi escrito e publicado pela primeira vez em 1882, em A Estação e, ainda em 1882, foi publicado com algumas modificações em Papéis Avulsos, reunião de contos em forma de livro. Um dos contos que também fazem parte de Papéis Avulsos é “O Espelho” e esse é um dado importante, pois a temática da razão também estará presente em suas páginas.
Bem, voltando a “O Alienista”, por meio de sua leitura podemos perceber uma desilusão com o poder soberano da razão e de seu braço direito, a ciência, para se entender e interpretar o mundo. Mas podemos perceber também o desnudar de determinados discursos manipulatórios utilizados para melhor manobrar o povo (é o caso do episódio do discurso do barbeiro, por exemplo).  
Além disso, nas páginas de Papéis Avulsos, obra em que figura a última edição em vida de Machado de “O Alienista”, nos deparamos com expressões anteriores ao século XIX, como é também o caso de um outro conto que figura naquela obra. Estamos falando de “O Segredo do Bonzo”, que seria, segundo seu subtítulo, um capítulo de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, obra publicada pela primeira vez no século XVI e que, aliás, neste ano da graça de 2014, completa 400 anos.
No caso de “O Alienista” (e não só dele), transformar aquela linguagem escrita e publicada pela última vez com o aval de seu autor em 1882 é modificar substancialmente o texto a ponto de se criar um novo texto que pode até mesmo ser porta de entrada para a leitura de uma edição que tenha como base a edição de 1882 de “O Alienista”, publicada em Papéis Avulsos.  Contudo, a edição modernizada, adaptada para a língua portuguesa dos nossos dias não pode deixar de ter é uma observação bem visível, em sua capa e em sua folha de rosto, sobre a sua especificidade de ser uma edição modernizada, adaptada e simplificada de “O Alienista”. E se essa adaptação for levada às últimas consequências até mesmo o título do conto teria de ser modificado, porque quem usa a palavra alienista nos dias de hoje?
Muitos falam de original, mas há vários sentidos para a palavra original no mundo das edições.
Em Crítica Textual, pode ser considerado original a última edição de uma obra publicada sob a supervisão de seu autor.
O que muitos hoje ignoram é que as obras, ao longo do processo de sua transmissão, sofrem modificações. Algumas delas, autorais. Outras, não-autorais.
Ou seja, as palavras escritas sofrem os efeitos do tempo - e dos seres humanos - e aquele provérbio latino, infelizmente, não condiz, inteiramente, com o que acaba ocorrendo. É preciso o trabalho de um restaurador de textos, o crítico textual, para que as palavras permaneçam tais quais seus autores as escreveram na última edição revista por eles. Porém, conforme o tipo de edição, a roupagem das palavras, a sua grafia, irá sofrer atualização ou não.
E por falar em palavras....
                

  




[1] CASTRO ROCHA, João Cezar. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 258-259.
[2] COUTINHO, Carlos Nelson. O Estruturalismo e a Miséria da Razão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 22.
[3] Cf. Op. Cit. p. 22.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Uma leitura do filme "Ninfomaníaca - Volume 1"

"Ninfomaníaca - Volume 1" , filme de Lars Von Trier, dialoga com o poder da sexualidade feminidade (e alguns de seus mitos), além de ligá-lo a temas, imagens e palavras relacionados a um interdiscurso que nos remete ao campo da religiosidade - num sentido amplo e no sentido judaico-cristão, sem esquecer à religiosidade em forma de mitologia (a figura da ninfa e sua relação com as cavernas, os rios) - à morte, ao prazer e, por meio da fala da personagem masculina mais velha, que tem o nome – curiosamente de origem judaica - traduzido como feliz -, essa sexualidade é afastada da carga de negatividade e de culpa que lhe foi atribuída durante muitos e muitos séculos de domínio patriarcal.[1]
Joe, a mulher, traz a culpa inscrita nas feridas e marcas do tempo que estão expostas em sua pele e em sua própria fala.  Também traz a culpa no juízo (uma espécie de condenação) que faz de sua mãe que, em suas palavras, é uma vadia.
Tal condenação também vem à tona com a verbalização da palavra pecado pela mulher e essa palavra está muito ligada à ideia de pecado original, à transposição do sexo ao campo do negativo, daquilo que não está certo e que só deve ser feito em determinadas circunstâncias, sob a pena de danação, de perdição. Contudo, se prestarmos mais atenção, vamos perceber que a aproximação à religiosidade numa acepção mais abrangente pode ser encontrada desde o início do filme com a alusão à caverna úmida, lugar onde habitam as ninfas, lugar que também se assemelha às catacumbas.
Essa caverna também remete ao órgão sexual feminino, o que nos provoca a impressão de estarmos no interior da mulher e é essa mulher que, por meio de suas palavras, nos conta a sua história para nós e para o homem que a ouve.
A imagem do pescador, do peixe e do que é utilizado na pesca também nos transportam para um universo de ligações sutis - que remetem a tempos muito antigos -  entre sexualidade e religiosidade. Também tais imagens aproximam o universo da mulher que fala ao homem que a escuta.
Outra questão importante é a visão do amor como um sentimento que ajudou a aprisionar as mulheres ou a tornar-nos submissas em relação aos homens durante século. Contudo, esse mesmo amor é apresentado em mais de uma cena como um diferencial em relação à qualidade de satisfação que o sexo pode proporcionar.
 Na história contada por Joe, o corpo masculino é admirado, mas também dessacralizado e mesmo fragilizado num filme em que a figura do pai da personagem principal, um médico, é aquele que a guia numa floresta aprazível, onde o freixo é a árvore de maior destaque. Tal árvore, curiosamente, é da família das oliveiras e fornece maná, o que a aproxima ao universo bíblico. Também a floresta nos remete a um jardim que, entre suas muitas ramificações de sentido, nos aproxima novamente à imagem do sexo como pecado, assim como da imagem bíblica da expulsão de Adão e Eva do paraíso e à culpa recaída sobre Eva e consequentemente a todo sexo feminino, o que me fez lembrar da seguinte passagem do livro Vagina: uma biografia, de Naomi Wolf:


Em um instante, percebi que o pecado original não se originou, como sustenta a tradição judaico-cristã, na sexualidade humana. O pecado original de nossa espécie foi o desvio de nossa tradição primitiva de reverência ao feminino e à sexualidade feminina e tudo o que isso representou para nós. Nosso pecado original está nos 5 mil anos de imposição de vergonha, estigma, controle, submissão, separação das mulheres, dos homens, compartimentação, insulto e comércio do feminino e sua sexualidade. Grandes deslocamentos e alienações na civilização e no desenvolvimento humano se seguiram ao pecado original, e os resultados estão à nossa volta. Em um flash, vi ondas de tragédia – para as mulheres, para os homens e para uma civilização desequilibrada e saqueada que se formou com base nessa alienação original.[2]

Ninfomaníaca parece dialogar com essas palavras, palavras de um livro que teve o seu título – Vagina – censurado, em 2013, num site que o divulgava para venda.
O livro – sua primeira edição - e o filme são de 2013.
Infelizmente, somos ainda hoje vistas por muitos homens e por muitas mulheres como Evas pecadoras. Mas tanto o filme –objeto deste artigo – como o livro citado acima criticam, cada um a seu modo, essa visão. Contudo, teremos de esperar a 2ª. parte do filme para conhecermos um pouco mais da história de uma mulher contada por ela própria a um homem que a ouve e que não vê pecado em suas palavras, em suas ações, em sua sexualidade. E o filme não por acaso começa com o som da água caindo em forma de chuva, a chuva que purifica, a água que tanto representa a imagem do feminino quanto do masculino.  




[1] Curiosamente, o título que aparece na tela é NINPHOMANIA, sendo que a letra O aparece estilizada. O filme é dividido como se contasse uma história publicada num livro, numa publicação impressa ou eletrônica e dialoga com outras artes, como a música, por exemplo, além de dialogar com o discurso científico.
[2] WOLF, Naomi. Vagina: uma biografia. Tradução Renata S. Laureano. São Paulo: Geração editorial, 2013, p. 361-362.