quarta-feira, 29 de julho de 2015

PERGUNTAS QUE NOS LEVAM À HEMIRENA, UMA CONTRIBUIÇÃO À DESCONSTRUÇÃO DO FEMININO COMO ESTEREÓTIPO DA ETERNA PASSIVIDADE



Procurando uma música no Youtube, sou surpreendida por com um anúncio da Aways Brasil que, antes que eu tenha tempo de clicar na figura que me permitiria pulá-lo, me traz a seguinte questão: “Será que nós colocamos limitações para as meninas?”
Essa pergunta desperta minha atenção porque, além de me remeter ao tempo em que eu era menina, me induz a pensar também em minhas filhas, em o que é ser mulher neste mundo que, muitas vezes, nem nos tem como interlocutoras e continuo a assisti-lo.
Todas as meninas que aparecem na propaganda respondem que sim à pergunta inicial e uma delas diz: “Eu não posso salvar uma pessoa. É sempre os meninos que salvam as meninas nas histórias".
Penso imediatamente em que muitas e muitas mulheres trouxeram e trazem uma vida em seus ventres e que mulheres, sendo ou não mães, contribuíram e contribuem na construção do mundo. Mas muitos não enxergam assim. Não digo as pessoas que produziram a propaganda citada nesta postagem. Trata-se de uma propaganda que estimula a superação das limitações que nos são impostas e que critica imposições que procuram oprimir-nos. Falo daqueles que, no passado, não conseguiram e que, no presente, não conseguem ver nós mulheres como seres humanos. É triste e, não só triste, é inaceitável que tal atitude persista nos dias de hoje. Continuo a assistir a propaganda e, diante da fala da menina - “Eu não posso salvar uma pessoa [...]” -, penso também em uma personagem de uma obra literária, hoje, praticamente esquecida, pois raramente é mencionada nas páginas das histórias das literaturas brasileira e portuguesa e mesmo nas escolas e universidades brasileiras. Trata-se de Hemirena de Máximas de Virtude e Formosura ou Aventuras de Diófanes, escrita, segundo Barbosa Machado, por Teresa Margarida da Silva e Orta. Mas por que digo: segundo Barbosa Machado? Porque essa obra foi publicada com pseudônimo – Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira - e teve sua autoria contestada em 1790, quando foi atribuída a Alexandre de Gusmão, escrivão da Puridade no reinado de D. João V.[1] Contudo, Barbosa Machado, um importante bibliófilo, em um dos alentados volumes da Biblioteca Lusitana, atribui a autoria dessa obra à Teresa Margarida que, diga-se de passagem, nunca a renegou.[2]
 Teresa Margarida da Silva e Orta nasceu na cidade de São Paulo, em 1711 ou 12 e faleceu em Belas, Portugal, em 1793.
  Foi muito criança – com cinco ou seis anos – para Lisboa e parece que não mais retornou à terra em que viu as primeiras imagens e em que ouviu os primeiros sons.
  Muito provavelmente escreveu Máximas de Virtude e Formosura com que Diófanes, Climinea e Hemirena, Príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça, obra cujo título é imenso, como era comum às publicações no Século XVIII.[3] Sua primeira edição é de 1752, saída pela Tipografia de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Ofício, e com todas as licenças necessárias. Teve mais algumas edições ainda no século XVIII, inclusive uma outra no próprio ano de 1752, e uma edição, com graves problemas, inclusive de supressão de capítulos, saída no século XIX, mais precisamente em 1818, pela Tipografia Rollandiana. Teve ainda algumas poucas edições no século XX (1945 e 1993) e uma edição crítica publicada no início do século XXI, em Portugal, pela Caminho (2002, sob a responsabilidade de Maria Santa Cruz, uma das principais estudiosas dessa obra)[4] e uma tese de doutorado, que também é uma edição crítica, realizada com apoio da FAPESP, por aquela que escreve estas linhas.[5] Contudo, nos século XVIII e XIX, tal obra sofreu graves problemas no processo de sua transmissão. Entre esses problemas, podemos citar: mudança de título (Máximas de Virtude e FormosuraAventuras de DiófanesHistória de Diófanes) e de atribuição de autoria, como já dissemos, e supressão de capítulos (por exemplo: na edição de 1818, foram retirados três dos cinco capítulos publicados em 1752). Tais problemas atrapalharam e muito a divulgação dessa obra entre os estudiosos das literaturas  portuguesa e brasileira, como também o próprio tema de Máximas de Virtude e Formosura contribuiu para mantê-la fora de publicações do século XIX sobre e de literatura brasileira, porque a sua temática tem mais um caráter universal, não dialogando com a exaltação exacerbada do nacional e da cor local. Mas, e Hemirena? Por que me lembrei dela ao assistir a propaganda? Vou lhes contar: numa certa altura da narrativa, Hemirena se veste de homem e passa a se chamar Belino. Ou seja: ela, assim como Diadorim de Grande Sertão Veredas, se disfarça de homem. Porém, o narrador ou a narradora sabe - e nos informa - que Belino é Hemirena. Numa outra passagem da história, há um naufrágio e é Belino (Hemirena) que salva as pessoas que iam se afogar. Ou seja: os leitores têm conhecimento de que quem salva as pessoas das águas é uma mulher e essa mulher tem força, tem inteligência e beleza: virtude e formosura.[6]
 Está mais do que na hora de obras como Máximas de Virtude Formosura ou Aventuras de Diófanes serem mais divulgadas e de fazerem parte dos nossos currículos de ensino de literatura. A sua presença e a sua leitura, além de contribuírem para o maior conhecimento do que foi produzido como obra de ficção, no século XVIII, em prosa, em língua portuguesa, vai nos ajudar a desconstruir imagens estereotipadas do sexo feminino, no caminho de um mundo com mais igualdade de direitos para todas e para todos.





[1] A grafia do pseudônimo não foi atualizada.
[2] É interessante assinalar que a biblioteca de Barbosa Machado é uma das bases da reconstrução da Real Biblioteca de Portugal e da origem da nossa Biblioteca Nacional (RJ), Brasil. 
    Sobre a questão da atribuição de autoria, até o momento, não são conhecidos documentos em que Teresa Margarida tenha renegado a autoria da obra em questão nem documentos em que Alexandre de Gusmão tenha assumido sua autoria.
[3] A grafia desse título foi atualizada por nós.
[4] Maria Santa Cruz é autora de um dos trabalhos mais abrangentes e eruditos sobre as influências que essa obra de Teresa Margarida recebeu. Trata-se de Crítica e Confluência em Aventuras de Diófanes. Lisboa, 1990. Dissertação de Doutorado.
[5] As edições de 1945, 1993 e a edição crítica de 2002 têm, como texto-base, o texto publicado em 1793, último em vida de Teresa Margarida da Silva e Orta, falecida em 20 de outubro de 1793. A edição crítica que faz parte da tese escrita por mim tem, como texto-base, a edição de 1752, primeira edição da obra em questão. Vale ressaltar que a edição de 1993 foi preparada também por aquela que escreve estas linhas. A edição de 1945 foi preparada por Rui Bloem.
 [6] Hemirena é uma figura contraditória. Ela também apresenta um perfil muitas vezes ligado ao estereótipo da mulher passiva. Contudo, as suas contradições colocam, a meu ver, em questão tal passividade.