quinta-feira, 25 de abril de 2019

Republicando um capítulo sobre a Revolução dos Cravos (Viva!) de A Mulher do Dia


Capítulo XXI – 25 de Abril de 1974

Amanheceu nos Açores e em todo Portugal. Um dia de sol e de calor intensos.
Cedo tivemos notícias do Movimento das Forças Armadas que veio para dar fim à sombria situação política dos últimos 48 anos. Meu avô seria libertado. Poderíamos viver abertamente como judeus. Ah, tantos sonhos, tantas esperanças... Eu estava feliz. Muito feliz. Era como se a primavera estivesse em mim. A força da vida.
Naquele mesmo dia, 25 de Abril de 1974, eu completava 13 anos. Atingia a maioridade religiosa. Há quatro dias, meu pai chegara de Fall River, especialmente para participar nas comemorações do meu aniversário.
A data tão esperada por mim, por minha família e pela Confraria da Coroa de David é o dia da retomada da liberdade em meu país. Através da Rádio Difusão Portuguesa – Açores, recebíamos informações do que se passava no Continente. A vovó e a mamã, na cozinha a preparar Seudet Mistvá para a festa, não deixavam de acompanhar, com atenção, as notícias vindas de Lisboa. Eu e meu pai ajudávamos na arrumação da casa e também não perdíamos nenhum dos fatos narrados pela RDP -Açores. Todos sabíamos que se o Movimento das Forças Armadas fosse vitorioso, meu avô sairia da prisão. Finalmente, após dois anos sem vê-lo, o velho Benjamim retornaria à casa!
A vontade de rever o avô Benjamim era tanta que, tão logo terminasse a festa dos meus 13 anos, pretendíamos, com as economias da minha avô e do meu pai, rumar de avião para Lisboa. Porém, através da Rádio, tomamos ciência de que o tráfego aéreo da capital do país fora encerrado e o Aeroporto estava ocupado pelas Forças Armadas. Não podíamos partir imediatamente após a festa. Teríamos de aguardar, em São Miguel, os acontecimentos. Um após outro, como o passar dos dias.
Havia ainda dúvidas a respeito do sucesso da operação militar. Corriam boatos desencontrados, contraditórios. Falava-se até mesmo da prisão do General António de Spínola. Diante da instabilidade dos atos ainda em processo, parte da população de Lisboa foi às mercearias e aos postos de gasolina com medo do que pudesse a estar por vir. E apesar dos apelos das Forças Armadas, que pediam às pessoas para que não saíssem de suas casas, o apoio popular começava a se fazer presente nas ruas da Baixa lisboeta. Viam-se cravos e armas lado a lado na cidade das sete colinas; civis e militares a construir a liberdade em meu país. Jamais se imaginou uma primavera assim em Portugal. Um verdadeiro assombro!
Desejei imenso estar em Lisboa. Participar naquele fato que entrava para a História. Lembrei-me da vocação revolucionária dos Açores. Da tentativa frustrada, em 1829, das forças absolutistas, durante as lutas liberais, de desembarcar na então Vila da Praia, hoje Praia da Victoria; da resistência à dominação espanhola; das nossas ilhas que têm por nome aves que voam tão alto ... Estava tão entretido nos céus e na História dos Açores, a recordar feitos tão heróicos, quando minha avó tocou em meu ombro esquerdo e trouxe-me novamente àquele dia de Abril. Num gesto simples, um leve toque de mãos em meu ombro, a avó Sofia desmanchou meus devaneios e pediu para que eu ajudasse minha mãe a pôr a mesa. Ainda meio confuso (pois tinha acabado de voltar à realidade daquele dia), fui até a cozinha pegar os copos, a louça de porcelana, comprados em Vila Franca do Campo; a toalha branca de linho, especialmente bordada para a ocasião; os talheres de prata herdados da minha bisavô materna. Depois de completar essa tarefa, pedi licença e fui até o quarto. Coloquei a melhor roupa que  tinha e olhei-me no espelho (meu rosto com 13 anos). O rosto daquele que será, a partir daquela data, um filho do testemunho. Assumirei, diante dos representantes da Confraria da Coroa de David e da minha família, o compromisso de manter, estudar e praticar todos os mandamentos da Torá. Uma responsabilidade tão grande quanto... Não ousei dar prosseguimento à frase. Via-me no meio dos capitães de Abril e do povo português a libertar o meu país das sombras e do silêncio. Era como se eu pudesse retomar os sonhos e as vozes daqueles que foram obrigados a calar-se durante dias, meses, anos, séculos e séculos a partir do decreto de expulsão, assinado por D. Manuel, o mesmo soberano, o monarca que teve o seu nome gravado na memória da História dos Descobrimentos, da construção dos Jerônimos e da Torre de Belém com a alcunha de o Venturoso.
Ah, Dom Manuel, quantas famílias dizimastes? Oh, vossa Alteza, a quantas crianças, por força da vossa palavra empenhada, negastes o passado, as raízes, as origens, a mãe e o pai? Ah, tanta morte anunciada! Tantos sonhos desmanchados em meio à imensa diáspora!
Ah, como gostaria que o avô Benjamim estivesse aqui... Foi ele quem me deu os Cinco Livros de Moisés que estão hoje aqui sobre a mesa diante do espelho. Os Cinco Livros de Moisés ou Pentateuco.
Meu pai chama-me à sala. É que Medeiros e Raposo acabaram de chegar. Medeiros, Raposo e suas respectivas senhoras, Dona Maria do Carmo e Dona Maria Arminda.
Minha avó e minha mãe convidam-nos a sentarmo-nos à mesa. Depois de estarmos em nossos lugares, meu pai passa a palavra a Medeiros, o responsável por minha educação religiosa, na sua ausência e na ausência do meu avô. Medeiros pede para que eu dê início à leitura da Torá. Abro o livro sagrado na página previamente escolhida e começo a ler, em hebraico, o Shemot ou Êxodo, 3, 1-6:
Um anjo de D’us apareceu a (Moisés) no centro de um fogo, no meio de um espinheiro. Ao olhar (Moisés) percebeu que o arbusto estava em chamas, mas não estava sendo consumido. Moisés disse (para si mesmo): “Eu devo ir até lá e investigar este fenômeno maravilhoso. Por que o arbusto não queima?”
Quando D’us viu que (Moisés) estava indo para investigar, Ele o chamou do meio do arbusto.
“Moisés, Moisés!”, Ele disse.
“Eis-me aqui”, replicou (Moisés).
“Não chegues mais perto”, disse (D’us). “Tira teus sapatos de teus pés. O lugar sobre o qual tu estás é chão sagrado.”
(D’us então) disse: “Eu sou o D’us de teu pai, o D’us de Abraão, D’us de Issac, e D’us de Jacob.
Meus olhos enchem-se de lágrimas. Ouço cada uma das palavras lidas por mim em hebraico. Eu as absorvo, eu as compreendo. E através da leitura, aproximo-me, sinto-me parte daqueles que, apesar das perseguições, dos editos, das fogueiras, dos banimentos perseveraram e preservaram, por meio de atos diários, cotidianos, sua identidade. Sim, eu sabia que estava a contribuir para resgatar uma tradição, um modo de vida arrancado à força dos que vieram antes de mim. Sim, eu sabia. Eu sei.
Assim que termino a leitura, recebo beijos da avó Sofia e da mamã Raquel. Meu pai, o Medeiros e o Raposo dão-me um forte abraço. Suas esposas cumprimentam-me com carinho. Após essas demonstrações de contentamento, damos início à refeição. Uma refeição completa a base de pão e carne, usualmente preparada e servida no Bar Mistvá pelas famílias judaicas. Quando terminamos, Medeiros recita Bercet Hamazon, a Benção das Graças, e meu pai pronuncia o agradecimento: Baruch shepetaráni meônesh halazê.
Naquele dia, os Medeiros e os Raposo permaneceram até bem tarde lá em casa. Ficamos, todos juntos, a conversar sobre os destinos de Portugal, das nossas famílias e da Confraria da Coroa de David.
Àquela altura, o Prof. Marcello Caetano havia passado o poder às mãos do General Spínola. Uma bandeira branca foi erguida no Quartel do Carmo. Tínhamos muitas esperanças. Sonhos de liberdade e saudades de meu avô. Tantas saudades que minha avó teve a ideia de ir até o porto de Ponta Delgada para pegar o Funchal e seguir por mar em direção a Lisboa. Eu me ofereci para ir com ela. Queria muito rever meu avô.
Naquele 25 de Abril de 1974, havia-me tornado um homem. Seria, daqui por diante, responsável pelos meus próprios atos, pelo meu caminho, um caminho traçado bem antes de mim.