quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Capítulo de Sobre a natureza das coisas, romance em processo de escritura

 

 

                                                                     

                                          O Cavaleiro

     

                                                              Prepare o seu coração

                                                                          Pras coisas que eu vou contar

                                                                           “Disparada”, Geraldo Vandré

    

 

 

  Ele veio lá do sertão. Do interior da Paraíba, ele veio. De um lugar, cujo nome não inspirava futuro benfazejo: Buracos, no Nordeste brasileiro. Seca, sol a pique, xique-xique, mandacaru, urubus à espreita, esqueleto de gado secando a céu aberto, boca aberta num sorriso grande de morte (ou estaria o gado zombando da própria sorte?).

          Às vezes, para beber água, era preciso cavar, cavar a terra ou espremer bem espremida a raiz de uma planta que contivesse o líquido precioso, necessário, imprescindível, mas raro naquela região esquecida por Deus e pelas autoridades governamentais deste país a que chamamos nosso. Nosso? Deles? E o direito à vida? Direito? Parece termo e conceito riscados do palavreado do dia a dia daquela gente. Injustiça, essa, sim, estava presente e era certeira, quase uma companheira. E, como o filósofo Voltaire dizia, no já mui distante Século das Luzes, injustiça gera injustiça.  

Com os pais, Vital e Francisca, abriu estradas, plantou roças, criou cabras e galinhas. Com estacas, pás e a força de um menino que se fazia homem, apesar do medo, apesar de todo o tempo ainda para crescer, trabalhava, até as seis da tarde, quando o sol quase se recolhia, atrás da colina. Mas, no pouco tempo livre que ele tinha, observava as letras desenhadas nas tabuletas penduradas nas esparsas mercearias que lá havia, nas feiras, onde os repentistas se apresentavam com palavras que jorravam tão harmoniosas ao som das rabecas, das sanfonas e sonhava. Sonhava em entendê-las, em conhecer seus mistérios, suas melodias, seus ritmos, suas sonoridades, seus sentidos e aqueles, às vezes, longos agrupamentos de frases e de sinais ainda estranhos a seu entendimento.

Aquele menino inteligente, tão chegado às letras, tinha, curiosamente, recebido o nome de um conhecido poeta grego da antiguidade. Alceu, assim era chamado e fora batizado, com óleo e sal, apesar de seus pais serem analfabetos e filhos e netos de analfabetos.

Mas como sucedera a esse menino chamar-se Alceu?

A história é a seguinte. Vou lhes contar: seu pai Vital muito descontente e triste com a morte de seus 12 filhos, todos eles ainda pequeninos, levados por doenças e enterrados como anjinhos, resolveu dar um nome diferente àquele que era o 13º filho que sua mulher gestava. Ao contrário dos outros filhos que receberam, em homenagem à mãe e a São Francisco, se meninos, o nome de Francisco, se meninas, o de Francisca, aquele teria nome e destino diferentes.

Um dia, tendo Vital ido à feira mais cedo do que de costume, pois havia levantado bem antes que os galos começassem a cantar, lá encontrou um homem muito bem vestido com um terno de um branco tão branco que reluzia apesar de o sol ainda não ter sequer despontado naquele horizonte matutino. Não havia quase ninguém, àquela hora, fora de suas casas. Apenas alguns poucos feirantes arrumavam suas mercadorias nas bancadas que eles próprios construíam. Aquele homem, porém, era diferente, não só pela indumentária que vestia. Ele arrumava, numa espécie de mesinha, livros que retirava de uma mala e, ao ver Vital, lhe perguntou:

- Queres este livro?

Vital, que não sabia ler uma sílaba, disse:

-Eu?

O homem respondeu:

- Sim, o senhor.

Vital, ainda sem muito acreditar naquele oferecimento, balbuciou:

- Não tenho dinheiro para comprar livro, não, senhor.

Vital, era verdade, não tinha dinheiro para comprar o livro. Até aquele momento, não havia tido oportunidade de folhear um único livro de capa dura sequer. Para ele, como para muitas pessoas daquela região, os livros eram objetos distantes, mas dignos de todo o respeito e mesmo veneração.

O homem respondeu:

- Não é para comprar. É dado. Estou a lhe oferecer. Aliás, hoje, irei dar um livro para cada uma das dez primeiras pessoas que se aproximarem desta mesinha. Amanhã, partirei para outra cidade, depois, para outra, até chegar a João Pessoa, onde pretendo fixar residência.

Vital, de bom grado, aceitou a oferta. Com respeito e deferência, começou a folhear o livro e perguntou:

- De que trata, seu doutor?

O homem respondeu:

 - São poemas de um grego muito muito antigo de nome Alceu.

 Alceu. Aquele nome agradou a Vital. Pareceu-lhe forte, imponente e mesmo ligado ao céu. Foi então que ele teve a ideia de chamar o filho que iria nascer de Alceu. Para isso, falaria com Francisca, se ela concordasse, a criança, se menino, receberia o nome de Alceu. Se menina, o de Helena.

O tempo passou... Amanheceu. Anoiteceu. Tornou a amanhecer e passaram-se ao todo quarenta semanas até chegar o 21 de março daquele ano da graça de 1921.

E o curioso é que 21 de março era um dia muito especial. No hemisfério norte, naquele tempo, trazia consigo a primavera. No hemisfério sul, o outono e as folhas amarelecidas das castanheiras. Conforme os astrônomos, era o equinócio vernal, ocasião em que a duração do dia e da noite é a mesma. Para os astrólogos, é, ainda hoje, o início do zodíaco, o primeiro dia de Áries.  Tais informações de sábios e de signos, Vital não sabia. O que ele sabia, o que via com seus próprios olhos, é que seu filho, um menino, nasceu forte, chorando a plenos pulmões e que aquele choro tão sonoro e constante era como que promessa de vida longa e fecunda.

- Sim, é Alceu, disse Vital.

- Alceu, concordou contente e emocionada Francisca que tanto chorava como ria com o menino nos braços. E aquele nascimento encheu aquela casa humilde de esperança e certamente - por que não? – de alegria.

Depois de tantas mortes, de tantos caixões pequenos e brancos enterrados a sete palmos, aquele menino parecia um milagre, um presente, uma benção de Deus.

E ele era mesmo abençoado:

O pequeno Alceu foi crescendo forte, inteligente, cheio de vida e de vontade de viver. Não havia canto nem objeto que o menino não tentasse conhecer.

Uma vez, quase que apanhou uma tigela que, na verdade, não tinha nada de tigela. Era uma cobra enrolada no canto do único cômodo da casa. Mas, bem na hora em que o menino ia colocar a mão naquela enganosa tigela, chegou Francisca que não só segurou o menino, como o tirou de lá e depois, com uma vassoura, espantou a cobra para longe daquele lugar.

           De outra feita, poucos anos após o nascimento do menino Alceu, quando se espalhou, por toda a Paraíba, a notícia de que o bando de Lampião havia saqueado Sousa, muitos ficaram temerosos de que Buracos tivesse igual destino.  Houve alarido, tumulto, muito choro, muita vela, correria pra lá e pra cá. Homens e mulheres temiam sair de suas casas. Mas, por aquelas bandas, para contentamento de muitos, Virgulino Ferreira e seu bando não passaram. Os habitantes de Buracos, assim como a família de Alceu, comemoraram quase um dia inteiro, com direito a sanfona e acordeon. E, no outro dia, foram quase todos para a roça trabalhar de enxada na mão e alegria no coração. Francisca ficou em casa. Havia acabado de dar à luz a mais um filho. Desta vez, uma menina que recebeu o nome de Francisca Cota. Ao todo, agora eram quatro filhos: três meninas (Cota, Celina e Helena, todas elas Francisca) e o menino de nome Alceu.

          O tempo foi passando. A chuva caiu pouco. Uns pinguinhos vez por outra. O sol. Ah, o sol... Esse ardia a terra já vermelha, quente, cheia de promessas de vida entranhadas em seu seio, por enquanto de leite mirrado. Mas a vida continua, como dizem portuguesas e portugueses, lá do outro lado desse mundaréu de água que chamam de mar oceano, ou teima em continuar, como deveriam dizer, nós, brasileiras e brasileiros, nesta terra de vera e grande e pesada cruz.        

  À noite, a lua enorme e branca, é o cenário perfeito de “O luar do sertão”. Dá até para ouvir, quando se olha para o horizonte: Não há oh gente oh não... Mas há tanta tristeza espalhada por esta terra crispada, eriçada, maltratada pela seca. Vidas secas e minguadas pela falta de oportunidades. Oportunidades que todo ser vivente deveria merecer e ter. Merecer e ter são dois verbos que raramente se conjugam na mesma frase nestas áridas terras sertanejas. Com frequência, estão separados. Difícil, muito difícil é se encontrarem em uma linha, até mesmo em uma página, imaginem vocês, em uma vida, em uma jornada, em uma lida. Mas há força nesta paisagem, nas marcas profundas da caatinga que se assemelham a rugas, que o tempo também esculpe nos rostos dos homens e das mulheres.

 Euclides da Cunha estava certo: “O nordestino é antes de tudo um forte”. Luta contra as adversidades desde o dia em que vem ao mundo. Este mundo que é grande para uns, pequeno para outros, mas que é o mesmo mundo que parece diferente conforme o lugar que o sujeito e a sujeita ocupam nesta viagem a que chamamos vida.           

 E o tempo foi passando, porém a terra seca, o sol sem trégua, o vento, que levanta a poeira que arde os olhos gastos de tanto esperar o que não chega, permanecem. Dia após dia. Noite após noite. Além da colina, no horizonte, imagens se formam tremidas, quase se desfazendo, como se estivessem fervendo numa frigideira a céu aberto a esperar as aves mirradas que ensaiam voos logo abandonados, num aborto perpetrado com a ajuda do homem que é lobo do homem e de tudo o que vive e não gira em torno de seu umbigo e de uma quase entidade chamada mercado que transforma quase todas as coisas e quase todos os seres que habitam a Terra em mercadoria, em morte, como um rei Midas que a um leve toque de sua mão maldita se condena à esterilidade de uma riqueza sem serventia. Sim. A falta de água torna a terra um grande sepulcro a espera de corpos.

E por causa da grande seca, Vital e Francisca foram, um dia, levando um carro com dois tonéis vazios, puxado a jegue, em busca de água para seu lar.  Não tardou muito, um forasteiro mal apessoado adentrou pela casa da família. Olhou. Assuntou, porém Alceu bem mais que depressa gritou: - Papai, pega a garrucha!

O homem não quis saber de mais nada. Saiu voado, desesperado a correr, a fugir. Pernas pra que te quero. Nem ao menos olhou para trás. Sumiu. Não deixou notícia ou pista de seu paradeiro. Não se sabe até hoje quem era ele. Nunca mais apareceu por aquelas bandas. Pelo menos, é o que se sabe.

O menino Alceu, com astúcia e coragem desmedidas, defendeu sua casa, suas três irmãs e a si mesmo do perigo.

Os pais estavam longe, muito longe. Não imaginavam o que seus filhos haviam passado.

Quando chegaram, com os dois tonéis de água cheios e muitas saudades em seus corações, depois de levarem o jegue para pastar, Vital e Francisca ouviram de seu filho mais velho a história da garrucha e mal puderem acreditar.

Os dois agradeceram a Deus por terem um filho tão sabido como Alceu. Teve cantoria. Teve ladainha. E naquele dia, todos, naquela casa pequenina, dormiram como se habitassem um paraíso, como se o sertão fosse um mar de bonanças e de promessas de fartura e de contentamentos sem fim.

O tempo passou e Alceu completou 10 anos. Dez anos, o tempo que Ulisses levou para regressar à Ítaca, aos braços de Penélope.

           Apesar de ainda não ter frequentado escola regular, o menino sabia ler, escrever, fazer contas elementares e principalmente sonhar com tempos melhores. Olhava a colina e perguntava a si mesmo: o que há ali adiante? O sol para lá vai todos os dias. Quero saber o que há ali adiante, depois da colina.

Numa noite de lua cheia, desses luares que não ficam nada a dever ao da cantiga de Catulo da Paixão Cearense e de Luiz Gonzaga, o pai de Alceu demorou a retornar à casa.

Francisca, com medo de ter acontecido algo de ruim a Vital, cobriu os ombros com um xale, deixou a filha mais velha, Francisca Helena, cuidando das duas menores e chamou Alceu para acompanhá-la.

Era noite de lua cheia – como já dissemos- mas ventava e o vento fazia um barulho semelhante àqueles dos filmes de terror. Os arbustos com seus galhos secos, que mais lembravam garras, pareciam se esticar na tentativa de alcançarem Francisca e Alceu.

Francisca, acostumada a andar por aqueles caminhos tormentosos – era ela que levava comida a seus pais, que também trabalharam na roça –, só pensava em encontrar Vital. Não tinha tempo de deixar crescer o medo que por ventura guardasse no peito.

Alceu olhava sua mãe que caminhava ligeira e destemida por aquelas veredas que pareciam esfumaçadas e mesmo saídas de um grande caldeirão de bruxaria. Mas não era magia. Era a ação do vento que não cessava de soprar e de espalhar pela noite adentro a terra seca.

De repente, apareceu contra a luz a figura de um homem que, montado num cavalo, conduzia três cabeças de gado. Era Vital, o cavaleiro, que havia ido atrás do gado que se dispersou da boiada.

 Alceu admirou seu pai com orgulho e, por instantes, olhou sua mãe e percebeu a alegria que ela sentia por ter encontrado Vital assim tão sobranceiro. Vital desceu do cavalo, levantou Alceu e o colocou no cavalo, dizendo com um sorriso que iluminava todo o rosto e, na imaginação de Alceu e também na de Francisca, rivalizou com a lua e também iluminou aquela noite: – Aqui está o cavaleiro. E os três seguiram para a casa, Vital e Francisca a pé, Alceu a cavalo, e mais o gado recolhido por Vital. O vento parou ou pareceu parar de soprar e a grandeza daquele momento povoou por muito tempo o coração daquele menino dando-lhe forças para prosseguir nesta viagem que chamados vida (continua, espero que em formato livro)


                                                                        Ceila Maria Ferreira


Foto Andreia Ferreira
Num Congresso, na UFSC, muito antes da pandemia
Foto Andreia Ferreira