quinta-feira, 28 de maio de 2020

Um livro, um instrumento musical e O Que Fazer?


Nestes tempos de pandemia, em que o Brasil cada vez mais vive uma espécie de pesadelo  – morte de mais de 1000 pessoas por dia, vítimas de COVID-19; devastação da Amazônia ; o país desacreditado; autoritarismo exacerbado; ataques à educação pela tentativa de implementação da EAD até mesmo no ensino presencial público; desigualdade galopante; fomento à misoginia, ao racismo, à homofobia – é muito triste.  

Neste momento, em que a ameaça do crescimento do fascismo assombra o futuro do nosso país e de nós mesmos, eu me lembro de uma fala de meu pai que, certa vez, me disse:  "Ceila, quem tem um livro, nunca está sozinho".

 Lembro-me também de uma frase de Carolina Maria de Jesus: “Quem não tem amigo, mas tem um livro, tem uma estrada.”

 Recordo-me ainda de palavras de Caetano Veloso, em uma entrevista (ainda me lembro delas): “quem sabe tocar um instrumento, nunca está sozinho”.

 Um livro. Um instrumento musical.  

 Infelizmente, ainda não sei tocar um instrumento musical. Pretendo aprender. Contudo, ainda não foi possível, apesar da vontade.  

 Outra lembrança: quando ainda era criança, fui a um concerto de piano com meu pai. Lembro-me que chorei de emoção e que me alegrei imensamente de ouvir aqueles sons e que pensei, inclusive, em ser pianista. Mas, minha mãe não gostou da ideia. Acho que o piano, para ela, tinha um quê de sujeição, de obrigação que ela não queria para mim. Então fui buscar alento num livro de Cecília Meireles. E para a minha surpresa, quantos sons havia lá! Fiquei maravilhada! Na altura, já tinha me apaixonado pela literatura e aquele livro (Ou Isto ou Aquilo) aprofundou aquela minha paixão que há muito se transformou em amor.

 É muito difícil eu não estar acompanhada por um livro. Antes dessa pandemia, quando pegava o metrô, tinha um ou dois livros na bolsa em caso de querer variar de leitura durante o trajeto e só parava de ler, quando algum músico, entrava no vagão, e começava a tocar uma canção, algumas vezes do nordeste ou de alguma outra parte da América Latina.

Quantos sons, quantas histórias que nos aproximam e que nos mostram que não estamos sozinhos e que somos mais fortes do que parecemos ser.

 No momento, estou lendo O Que Fazer?, de Nikolai Tchernychevskii, em tradução de Angelo Segrillo, publicada pela Expressão Popular, neste ano de 2020 (a primeira tradução desse romance, para a língua portuguesa, foi realizada pelo próprio Angelo Segrillo e saiu em 2015). E esse livro, que fez muita gente pensar e contribuiu para que muitas e muitos agissem, tendo influenciado a Revolução Russa, nos transmite algo muito importante, e, hoje, podemos dizer, vital: esperança na possibilidade de construção de um novo mundo, sem perder a poesia, sim, como na passagem em que Dmitriï Sergeevitch Lopukhov fala à Vera  Pavlovna:

   

[…] Não é estranho que você entenda e guarde no coração esses pensamentos que seus livros não podiam descrever-lhe claramente, Seus livros forma escritos por pessoas que estudaram esses pensamentos quando eles ainda eran pensamentos. Esses pensamentos pareciam surpreendentes, maravilhosos, e só. Mas agora esses pensamentos são visíveis na vida real e foram escritos outros livros por outras pessoas que acham esses pensamentos bons, mas que não há nada de surpreendente neles. E agora, Verinha, esses pensamentos estão no ar, como aroma nos campos quando as flores desabrocham. Penetram em toda parte. […]” p. 111-112.

 

 

          Uma obra que coloca em discussão outras obras da literatura mundial e que nos apresenta uma personagem como Vera Pavlovna, muito a frente de seu tempo ou do que imaginamos ter sido seu tempo, que, quando lemos o livro, também é o nosso tempo. E Vera, a Verinha,  continua a nos propor algo novo.  E não só ela, mas outras personagens também.  

 

Recomendo vivamente a leitura desse livro que, a cada dia, me surpreende e me convida a pensar, assim como, tenho certeza, a muit@s que irão lê-lo, pelo tema tratado, pela maneira que a história é contada em suas páginas, assim como pela proposta de literatura e de sociedade nele presentes.  


sexta-feira, 8 de maio de 2020

A vida não é leve


Diante do que vi e ouvi, nesta semana, assim como diante da morte de Flavio Migliaccio, de Aldir Blanc, de Rubem Fonseca , de Moraes Moreira e do crescente número de falecimentos por COVID-19 , tive que interromper o que vinha escrevendo neste blog para dizer:
Impossível  ficar leve diante da morte de tantas pessoas.
Impossível não se indignar diante das ações do Governo Federal , ainda mais durante esta pandemia.
Muita tristeza. Muita revolta. Muita incerteza.  Até quando vamos engolir a tristeza, a revolta e retroceder até que não sobre nada dos nossos sonhos, das nossas vidas? Até quando?
A insegurança domina as ruas, as praças, o dia a dia.
O vírus escancara a desigualdade no Brasil, um país rico que não distribuiu riqueza a seu povo. Somos como disse Sergio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil: “uns desterrados em nossa terra”. Uns desterrados.  Em nossa terra?  
Lembro-me das palavras do grande Aldir Blanc, recentemente falecido, em decorrência da  COVID-19: “ o Brazil tá matando o Brasil “[1] . Alguns vão dizer, mas era um outro momento. Sim, um outro momento, mas essas palavras ainda se aplicam como uma luva aos dias de hoje, e precisam ecoar das nossas janelas até que uma flor nasça e cresça nas ruas. Mas quando?
 Até quando?  E, até lá, quanto vamos retroceder?
Numa reportagem, na tv, pessoas sem máscaras dizem que não têm medo (de adoecer?).  Se esqueceram, ou nunca souberam, o que é ser um ser humano. Riem dos que andam de máscaras. Riem dos que se protegem e protegem outros seres humanos.
Diante dessa imagem, eu me recordo das palavras de Gramsci: “O velho mundo está morrendo. O novo tarda em aparecer. E nessa meia luz surgem os monstros”. [2] Sim, os monstros. O riso muitas vezes é um sinal de perversidade.  O riso muitas vezes é sinal de que não restou  compaixão, solidariedade, sentimentos de que precisamos para construir um novo mundo em que as coisas não valham mais que as pessoas.
Até lá, parafraseando a grande Conceição Evaristo, combinamos de não morrer. [3]
Até lá, escrevo e escreverei para ter forças de continuar viva num país que diariamente nos assusta, nos maltrata, nos deprime, nos violenta. Um país que nos quer caladas, calados, bem quietinhas e quietinhos, fazendo o que a elite do atraso mandar[4].
 Até quando ?




[1] “Querelas do Brasil”, Aldir Blanc e Maurício Tapajós.
[3] Na obra de Conceição Evaristo, Olhos d´água, o título do conto: “A gente combinamos de não morrer” .
[4] Elite do atraso: expressão usada por Jessé Sousa e parte do título de um famoso livro desse autor.