Capítulo XXI – 25 de Abril de 1974
Amanheceu nos Açores e em todo Portugal. Um dia de sol
e de calor intensos.
Cedo tivemos notícias do Movimento das Forças Armadas
que veio para dar fim à sombria situação política dos últimos 48 anos. Meu avô
seria libertado. Poderíamos viver abertamente como judeus. Ah, tantos sonhos,
tantas esperanças... Eu estava feliz. Muito feliz. Era como se a primavera
estivesse em mim. A força da vida.
Naquele mesmo dia, 25 de Abril de 1974, eu completava
13 anos. Atingia a maioridade religiosa. Há quatro dias, meu pai chegara de Fall River, especialmente para
participar nas comemorações do meu aniversário.
A data tão esperada por mim, por minha família e pela
Confraria da Coroa de David é o dia da retomada da liberdade em meu país.
Através da Rádio Difusão Portuguesa – Açores, recebíamos informações do que se
passava no Continente. A vovó e a mamã, na cozinha a preparar Seudet Mistvá para a festa, não deixavam
de acompanhar, com atenção, as notícias vindas de Lisboa. Eu e meu pai
ajudávamos na arrumação da casa e também não perdíamos nenhum dos fatos
narrados pela RDP -Açores. Todos sabíamos que se o Movimento das Forças Armadas
fosse vitorioso, meu avô sairia da prisão. Finalmente, após dois anos sem
vê-lo, o velho Benjamim retornaria à casa!
A vontade de rever o avô Benjamim era tanta que, tão
logo terminasse a festa dos meus 13 anos, pretendíamos, com as economias da
minha avô e do meu pai, rumar de avião para Lisboa. Porém, através da Rádio,
tomamos ciência de que o tráfego aéreo da capital do país fora encerrado e o
Aeroporto estava ocupado pelas Forças Armadas. Não podíamos partir
imediatamente após a festa. Teríamos de aguardar, em São Miguel, os
acontecimentos. Um após outro, como o passar dos dias.
Havia ainda dúvidas a respeito do sucesso da operação
militar. Corriam boatos desencontrados, contraditórios. Falava-se até mesmo da
prisão do General António de Spínola. Diante da instabilidade dos atos ainda em
processo, parte da população de Lisboa foi às mercearias e aos postos de
gasolina com medo do que pudesse a estar por vir. E apesar dos apelos das
Forças Armadas, que pediam às pessoas para que não saíssem de suas casas, o
apoio popular começava a se fazer presente nas ruas da Baixa lisboeta. Viam-se
cravos e armas lado a lado na cidade das sete colinas; civis e militares a
construir a liberdade em meu país. Jamais se imaginou uma primavera assim em
Portugal. Um verdadeiro assombro!
Desejei imenso estar em Lisboa. Participar naquele
fato que entrava para a História. Lembrei-me da vocação revolucionária dos
Açores. Da tentativa frustrada, em 1829, das forças absolutistas, durante as
lutas liberais, de desembarcar na então Vila da Praia, hoje Praia da Victoria;
da resistência à dominação espanhola; das nossas ilhas que têm por nome aves
que voam tão alto ... Estava tão entretido nos céus e na História dos Açores, a
recordar feitos tão heróicos, quando minha avó tocou em meu ombro esquerdo e
trouxe-me novamente àquele dia de Abril. Num gesto simples, um leve toque de mãos
em meu ombro, a avó Sofia desmanchou meus devaneios e pediu para que eu
ajudasse minha mãe a pôr a mesa. Ainda meio confuso (pois tinha acabado de
voltar à realidade daquele dia), fui até a cozinha pegar os copos, a louça de
porcelana, comprados em Vila Franca do Campo; a toalha branca de linho,
especialmente bordada para a ocasião; os talheres de prata herdados da minha
bisavô materna. Depois de completar essa tarefa, pedi licença e fui até o
quarto. Coloquei a melhor roupa que tinha
e olhei-me no espelho (meu rosto com 13 anos). O rosto daquele que será, a
partir daquela data, um filho do testemunho. Assumirei, diante dos
representantes da Confraria da Coroa de David e da minha família, o compromisso
de manter, estudar e praticar todos os mandamentos da Torá. Uma responsabilidade tão grande quanto... Não ousei dar
prosseguimento à frase. Via-me no meio dos capitães de Abril e do povo
português a libertar o meu país das sombras e do silêncio. Era como se eu
pudesse retomar os sonhos e as vozes daqueles que foram obrigados a calar-se
durante dias, meses, anos, séculos e séculos a partir do decreto de expulsão,
assinado por D. Manuel, o mesmo soberano, o monarca que teve o seu nome gravado
na memória da História dos Descobrimentos, da construção dos Jerônimos e da
Torre de Belém com a alcunha de o Venturoso.
Ah, Dom Manuel, quantas famílias dizimastes? Oh, vossa
Alteza, a quantas crianças, por força da vossa palavra empenhada, negastes o
passado, as raízes, as origens, a mãe e o pai? Ah, tanta morte anunciada!
Tantos sonhos desmanchados em meio à imensa diáspora!
Ah, como gostaria que o avô Benjamim estivesse aqui...
Foi ele quem me deu os Cinco Livros de Moisés que estão hoje aqui sobre a mesa
diante do espelho. Os Cinco Livros de Moisés ou Pentateuco.
Meu pai chama-me à sala. É que Medeiros e Raposo
acabaram de chegar. Medeiros, Raposo e suas respectivas senhoras, Dona Maria do
Carmo e Dona Maria Arminda.
Minha avó e
minha mãe convidam-nos a sentarmo-nos à mesa. Depois de estarmos em nossos
lugares, meu pai passa a palavra a Medeiros, o responsável por minha educação
religiosa, na sua ausência e na ausência do meu avô. Medeiros pede para que eu
dê início à leitura da Torá. Abro o
livro sagrado na página previamente escolhida e começo a ler, em hebraico, o Shemot ou Êxodo, 3, 1-6:
Um anjo de D’us apareceu a (Moisés)
no centro de um fogo, no meio de um espinheiro. Ao olhar (Moisés) percebeu que
o arbusto estava em chamas, mas não estava sendo consumido. Moisés disse (para
si mesmo): “Eu devo ir até lá e investigar este fenômeno maravilhoso. Por que o
arbusto não queima?”
Quando D’us viu que (Moisés) estava
indo para investigar, Ele o chamou do meio do arbusto.
“Moisés, Moisés!”, Ele disse.
“Eis-me aqui”, replicou (Moisés).
“Não chegues mais perto”, disse
(D’us). “Tira teus sapatos de teus pés. O lugar sobre o qual tu estás é chão
sagrado.”
(D’us então) disse: “Eu sou o D’us
de teu pai, o D’us de Abraão, D’us de Issac, e D’us de Jacob.
Meus olhos
enchem-se de lágrimas. Ouço cada uma das palavras lidas por mim em hebraico. Eu
as absorvo, eu as compreendo. E através da leitura, aproximo-me, sinto-me parte
daqueles que, apesar das perseguições, dos editos, das fogueiras, dos
banimentos perseveraram e preservaram, por meio de atos diários, cotidianos,
sua identidade. Sim, eu sabia que estava a contribuir para resgatar uma
tradição, um modo de vida arrancado à força dos que vieram antes de mim. Sim,
eu sabia. Eu sei.
Assim que termino a leitura, recebo beijos da avó
Sofia e da mamã Raquel. Meu pai, o Medeiros e o Raposo dão-me um forte abraço.
Suas esposas cumprimentam-me com carinho. Após essas demonstrações de
contentamento, damos início à refeição. Uma refeição completa a base de pão e
carne, usualmente preparada e servida no Bar
Mistvá pelas famílias judaicas. Quando terminamos, Medeiros recita Bercet Hamazon, a Benção das Graças, e
meu pai pronuncia o agradecimento: Baruch
shepetaráni meônesh halazê.
Naquele dia, os Medeiros e os Raposo permaneceram até
bem tarde lá em casa. Ficamos, todos juntos, a conversar sobre os destinos de
Portugal, das nossas famílias e da Confraria da Coroa de David.
Àquela altura, o Prof. Marcello Caetano havia passado
o poder às mãos do General Spínola. Uma bandeira branca foi erguida no Quartel
do Carmo. Tínhamos muitas esperanças. Sonhos de liberdade e saudades de meu
avô. Tantas saudades que minha avó teve a ideia de ir até o porto de Ponta
Delgada para pegar o Funchal e seguir por mar em direção a Lisboa. Eu me
ofereci para ir com ela. Queria muito rever meu avô.
Naquele 25 de Abril de 1974, havia-me tornado um
homem. Seria, daqui por diante, responsável pelos meus próprios atos, pelo meu
caminho, um caminho traçado bem antes de mim.
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