"Ninfomaníaca - Volume 1" , filme de Lars Von Trier, dialoga com o poder da
sexualidade feminidade (e alguns de seus mitos), além de ligá-lo a temas,
imagens e palavras relacionados a um interdiscurso que nos remete ao campo da
religiosidade - num sentido amplo e no sentido judaico-cristão, sem esquecer à
religiosidade em forma de mitologia (a figura da ninfa e sua relação com as
cavernas, os rios) - à morte, ao prazer e, por meio da fala da personagem
masculina mais velha, que tem o nome – curiosamente de origem judaica -
traduzido como feliz -, essa sexualidade é afastada da carga de negatividade e
de culpa que lhe foi atribuída durante muitos e muitos séculos de domínio
patriarcal.[1]
Joe, a mulher, traz a culpa inscrita nas feridas e marcas do tempo que
estão expostas em sua pele e em sua própria fala. Também traz a culpa no juízo (uma espécie de
condenação) que faz de sua mãe que, em suas palavras, é uma vadia.
Tal condenação também vem à tona com a verbalização da palavra pecado pela
mulher e essa palavra está muito ligada à ideia de pecado original, à
transposição do sexo ao campo do negativo, daquilo que não está certo e que só
deve ser feito em determinadas circunstâncias, sob a pena de danação, de
perdição. Contudo, se prestarmos mais atenção, vamos perceber que a aproximação
à religiosidade numa acepção mais abrangente pode ser encontrada desde o início
do filme com a alusão à caverna úmida, lugar onde habitam as ninfas, lugar que
também se assemelha às catacumbas.
Essa caverna também remete ao órgão sexual feminino, o que nos provoca a
impressão de estarmos no interior da mulher e é essa mulher que, por meio de
suas palavras, nos conta a sua história para nós e para o homem que a ouve.
A imagem do pescador, do peixe e do que é utilizado na pesca também nos
transportam para um universo de ligações sutis - que remetem a tempos muito
antigos - entre sexualidade e
religiosidade. Também tais imagens aproximam o universo da mulher que fala ao
homem que a escuta.
Outra questão importante é a visão do amor como um sentimento que ajudou
a aprisionar as mulheres ou a tornar-nos submissas em relação aos homens
durante século. Contudo, esse mesmo amor é apresentado em mais de uma cena como
um diferencial em relação à qualidade de satisfação que o sexo pode
proporcionar.
Na história contada por Joe, o corpo masculino é admirado, mas também dessacralizado e mesmo
fragilizado num filme em que a figura do pai da personagem principal, um
médico, é aquele que a guia numa floresta aprazível, onde o freixo é a árvore
de maior destaque. Tal árvore, curiosamente, é da família das oliveiras e
fornece maná, o que a aproxima ao universo bíblico. Também a floresta nos
remete a um jardim que, entre suas muitas ramificações de sentido, nos aproxima
novamente à imagem do sexo como pecado, assim como da imagem bíblica da
expulsão de Adão e Eva do paraíso e à culpa recaída sobre Eva e
consequentemente a todo sexo feminino, o que me fez lembrar da seguinte
passagem do livro Vagina: uma biografia,
de Naomi Wolf:
Em um
instante, percebi que o pecado original não se originou, como sustenta a
tradição judaico-cristã, na sexualidade humana. O pecado original de nossa
espécie foi o desvio de nossa tradição primitiva de reverência ao feminino e à
sexualidade feminina e tudo o que isso representou para nós. Nosso pecado
original está nos 5 mil anos de imposição de vergonha, estigma, controle,
submissão, separação das mulheres, dos homens, compartimentação, insulto e
comércio do feminino e sua sexualidade. Grandes deslocamentos e alienações na
civilização e no desenvolvimento humano se seguiram ao pecado original, e os
resultados estão à nossa volta. Em um flash,
vi ondas de tragédia – para as mulheres, para os homens e para uma
civilização desequilibrada e saqueada que se formou com base nessa alienação
original.[2]
Ninfomaníaca parece dialogar com essas palavras, palavras de um livro que
teve o seu título – Vagina –
censurado, em 2013, num site que o divulgava para venda.
O livro – sua primeira edição - e o filme são de 2013.
Infelizmente, somos ainda hoje vistas por muitos homens e por muitas
mulheres como Evas pecadoras. Mas tanto o filme –objeto deste artigo – como o
livro citado acima criticam, cada um a seu modo, essa visão. Contudo, teremos
de esperar a 2ª. parte do filme para conhecermos um pouco mais da história de
uma mulher contada por ela própria a um homem que a ouve e que não vê pecado em
suas palavras, em suas ações, em sua sexualidade. E o filme não por acaso
começa com o som da água caindo em forma de chuva, a chuva que purifica, a água
que tanto representa a imagem do feminino quanto do masculino.
[1] Curiosamente,
o título que aparece na tela é NINPHOMANIA, sendo que a letra O aparece estilizada. O filme é dividido como se contasse uma história publicada num livro, numa publicação impressa ou eletrônica e dialoga com outras artes, como a música, por exemplo, além de dialogar com o discurso científico.
[2]
WOLF, Naomi. Vagina: uma biografia.
Tradução Renata S. Laureano. São Paulo: Geração editorial, 2013, p. 361-362.
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