terça-feira, 31 de março de 2015

A respeito de Relatos Selvajes


     Estou lendo Rayela em espanhol numa edição comemorativa aos cinquenta anos de publicação – completados em 2013 - dessa revolucionária obra de Júlio Cortázar.[1]  Recentemente, para um evento de que participei na UFF, reli “Consideração do poema”, de Carlos Drummond de Andrade. [2]
                  Tanto uma frase de Cortázar (“[...] El fondo de un hombre es el uso que haga de sua libertad. [...])” , que podemos ler na página 602 naquela publicação comemorativa,  assim como a primeira estrofe do referido poema de Drummond (“Não rimarei a palavra sono/com a incorrespondente palavra outono./ Rimarei com a palavra carne/ou qualquer outra, que todas me convêm./As palavras não nascem amarradas,/ elas saltam, se beijam, se dissolvem,/ no céu livre por vezes um desenho,/são puras, largas, autênticas, indevassáveis./[...]”) me fazem pensar num filme que assisti recentemente aqui no Rio. Trata-se de “Relatos Selvajes,” película que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano de 2015, porém não levou a estatueta.   
     Sim, a liberdade, segundo Cecília Meireles “[...] essa palavra/ que o sonho humano alimenta:/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda [...]”, perpassa todo o filme. Mais a falta de liberdade traduzida pela adequação a papéis e a normas sociais que geraram e que geram diferentes graus de renúncias que a construção de civilizações impuseram aos seres humanos como indivíduos é tema também desses Relatos chamados de salvajes e construídos nas brechas das rotinas e em situações limite em que seres humanos escapam ou são arremessados para fora das amarras a eles (a nós) impostas pelas normas sociais e por uma realidade que mais parece um pesadelo. [3]
      Há tempos, não me impactava tanto com um filme.
      “Relatos Selvajes “ começa mostrando a que veio.
      Já nas cenas iniciais, nos é sorrateiramente dada a ver uma revista, em que podemos surpreender a imagem de uma pequena gazela apavorada tentando fugir de seus predadores famintos. Tarefa praticamente inglória a da gazela, pensamos. É muito difícil, quase impossível, que ela consiga escapar. Contudo, nessa altura, ainda não conseguimos perceber que muitas das personagens daquela película - assim como nós - estamos, sim, no lugar daquela gazela: fugindo – numa fuga muitas vezes inglória – de predadores numa sociedade que está à beira da barbárie, onde a mentira, a corrupção, a cooptação ao sistema vigente são a norma.
     Também é bastante curiosa a abertura do filme em que aparecem vários animais, entre eles, a raposa. E fica muito difícil não fazer uma ligação entre os relatos que seguem àquela apresentação com histórias em forma de poemas que tiveram destaque há muito tempo, na Idade Média, e que possivelmente se mantêm vivos no que podemos chamar de parte do imaginário popular ou não tão popular assim. Estamos falando de Le Roman de Renart, em que uma raposa tenta ludibriar alguns de seus companheiros como o lobo e o corvo. Contudo, nessas histórias também há crítica de costumes que ocorre ferozmente em “Relatos Selvajes,” um filme que, às vezes, quase se deixa levar por alguns ditos e hábitos cristalizados pelo senso comum, mas que consegue, como num passe de mágica, escapar deles e mostrar algumas das lutas travadas no que há de mais íntimo de muitos de nós. [4]
    Diz Cortázar, numa das cartas a Jean Barnabé, contidas na edição anteriormente citada, também na página 602: “ [...] Lo que creo es que la realidad cotidiana en que creemos vivir es apenas el borde de una fabulosa realidade reconquistable, y que la novela, como la poesia, el amor y la acción, deben proponerse penetrar en esa realidad.[...]
    Em “Relatos Selvajes”, podemos entrever em alguns momentos essa realidade e também (mas não só) como que os problemas que vivemos no Brasil se parecem tanto com os de nossos irmãos argentinos e talvez, quem sabe, com os de  toda a América Latina ainda tão próxima dos efeitos das ditaduras por que passou num tempo que ainda perpetua suas marcas e seus herdeiros.





[1] CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Aguilar/Altea/Taurus/Alfaguara, 2014.
[2] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Consideração do poema". In: ---. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[3] MEIRELES, Cecília. Romanceiro XXIV ou da Bandeira da Inconfidência. In: Romanceiro da Inconfidência. In: http://professor.ucg.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5628/material/Cec%C3%83%C2%ADlia%20Meireles%20-%20Romanceiro%20da%20Inconfid%C3%83%C2%AAncia%20%5BRev%5D%5B1%5D.pdf
[4] Sobre “Le Roman de Renart”: http://www.infopedia.pt/$romance-de-renart

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