Logo nos primeiros meses de 2014, na
imprensa chamada por muitos de tradicional e na Internet, foram travadas
discussões sobre uma edição modernizada de um dos mais famosos contos de
Machado de Assis: “O Alienista”. Falou-se em original, em texto autoral, em é
“preciso manter o sentido do texto,” em que “estavam maculando a obra de um dos
maiores escritores da língua portuguesa,” mas poucos foram os que falaram de
Crítica Textual, a disciplina que estuda a história da transmissão de textos e
que nos ajuda a preparar uma edição conforme a última redação materializada
pelo autor – no caso de “O Alienista” – e, no caso de obras que não tenham mais
originais, nos fornece as diretrizes para a preparação de uma edição que também
leve em conta a história da transmissão dos textos e o exame dos apógrafos que
chegaram até nós ou por alguém ter escrito sobre eles ou por que eles foram
conservados e se encontram em alguma biblioteca ainda nos dias de hoje ou algum
dia – mas não atualmente - puderam ser encontrados em suas prateleiras.
Contudo, era e é preciso falar de Crítica Textual, pois falando de Crítica
Textual, quebra-se a ilusão de que os textos, as obras são imunes, também quanto
à sua transmissão, à passagem do tempo e
à ação dos seres humanos. Quebrando tal ilusão, a saúde do que se fala, do que
se diz, do que se escreve sobre língua e sobre literatura agradece e a historicidade
do processo de construção, edição e recepção da obra passa a ser levada em
conta por aqueles que são leitores, estudiosos, produtores, transmissores
dessas obras.
Quem trabalha com Crítica Textual sabe
que à medida que os textos são transmitidos, eles são também modificados. Imaginem
vocês textos muito antigos e “O Alienista” não é tão antigo assim. A última vez
– que se tem notícia – que ele foi publicado em vida de Machado de Assis foi em
1882. De lá para cá, muita água rolou por debaixo da ponte. Muitos conheceram a
história da Casa Verde de Itaguaí, de D. Evarista, de Crispim Soares e do douto
Simão Bacamarte, porém não necessariamente com todas as palavras que constam na
última versão que Machado deu para essa história. Sim, amigos e amigas, os
textos devem ser restaurados como os monumentos, os afrescos, as pinturas,
observando e conservando, sempre que possível, as marcas de sua transmissão –
que são produto também de estratégias editoriais - ao longo do tempo, das
páginas e dos suportes que as transportam até nós.
Apesar do pouco ou quase nada que se
falou na imprensa em geral sobre Crítica Textual, 2014, em termos de Crítica
Textual no meio universitário brasileiro e não apenas nele, foi um ano de manutenção
de conquistas longamente batalhadas, mas também de franco crescimento dessa
disciplina. Vale ressaltar que, nesta postagem, falaremos sobre algumas das
atividades realizadas em Crítica Textual, em 2014, no Brasil. Infelizmente, não
falaremos de todas elas, mas das que tivemos conhecimento e das que estive de
uma forma ou de outra envolvida.
Vamos a elas:
No primeiro semestre deste ano, mais
especificamente em maio, foi mantida com sucesso a Semana de Filologia na USP e,
em julho, o Grupo de Trabalho do GT de Crítica Textual, no Encontro da ANPOLL
(Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística), em
Florianópolis, contou com a participação ativa de pesquisadores de várias
partes do país e, nesse encontro, no âmbito do GT, foi aprovada a criação da Revista de Crítica Textual, com
periodicidade semestral, e a publicação de um livro cujo tema será Crítica
Textual. Tais publicações sairão em 2015 e esperamos que a revista tenha vida
longa.
Em agosto, foi realizado, em Salvador, na
UNEB, o Seminário de Estudos Filológicos, dessa vez intitulado: Entre o Texto e
o Discurso. Esse evento não tem como
tema apenas a Crítica Textual, mas sim a Filologia no sentido inclusive de Linguística
Histórica. Além disso, fez parte do temário desse evento a própria Análise de
Discurso em consonância com estudos filológicos.
Ainda em 2014, concluímos – em companhia da
pesquisadora e professora da UERJ Carmem Negreiros – o primeiro volume de uma
edição crítica com viés genético de Recordações
do escrivão Isaias Caminha, romance de Lima Barreto. [1]
Esse volume foi aceito para publicação pela EDUSP e deverá chegar às livrarias em
2015.
Além disso, no início de 2014, foi
defendida na UFF, por Viviane Arena Figueiredo, como tese de Doutorado, uma
edição crítica de Ânsia eterna,
reunião de contos de Júlia Lopes de Almeida e, em setembro, mais precisamente
no dia do aniversário de falecimento de Machado de Assis, foi lançada na
livraria da EDUFF, em Icaraí, Niterói (RJ), uma edição crítica de Dom Casmurro, preparada por um dos
maiores críticos textuais nascidos no Brasil. Seu nome: Maximiano de Carvalho e
Silva, Professor Emérito da Universidade Federal Fluminense.
Em outubro, tivemos o II Seminário
Autores e Livros: gênese e transmissão textuais, promovido pelo Laboratório de
Ecdótica da UFF, o LABEC-UFF. Desse evento, sairão os Anais, em 2015, como também será postado no Youtube o que ficou
registrado em vídeo das atividades de algumas de suas mesas. Inclusive,
tivemos, nesse evento, uma mesa com escritores.
E mais: em 2014, um grupo de
pesquisadores – a maior parte é de professores de universidades brasileiras -
que trabalha com Crítica Textual foi chamado - por iniciativa da também pesquisadora
Maria Olívia Saraiva e com a anuência da Divisão de Pesquisa e do Diretor
daquela Fundação - para formarem um Grupo de Pesquisa em Crítica Textual na
Biblioteca Nacional. Tal Grupo já está cadastrado no CNPq e já iniciou suas
atividades de investigação.
Não
podemos esquecer que a Biblioteca Nacional é um grande centro irradiador de
cultura e que a criação de um Grupo de Pesquisa de Crítica Textual em suas
fileiras – fileiras essas por onde já passaram grandes filólogos - deve
contribuir para a divulgação e valorização dessa disciplina não só nas
universidades brasileiras como também fora delas.
Portanto, o ano de 2014 foi mais do que
positivo em termos de crescimento da Crítica Textual em nosso país. E valorizar
a Crítica Textual, assim como conhecê-la melhor, nos ajuda a perceber e a
compreender que a mudança é o normal na vida, que somos seres que carregamos
histórias que muitas vezes nem sequer conhecemos e que à medida que são
transmitidas – e como são transmitidas, transformadas, recontadas ou
silenciadas- são difundidas. Somos muito mais do que a percepção consciente que
temos de nós mesmos. Trazemos conosco muitos tempos, lugares que algumas vezes
vislumbramos quando olhamos o horizonte que algumas vezes desponta à nossa
frente quando também abrimos um livro, uma publicação ou simplesmente olhamos à
nossa volta.
Que 2015 seja um ano de muitos horizontes
para a Crítica Textual e para todos nós e que consigamos realizamos projetos
que dão e darão vida à nossa existência!
[1] Tal edição
também contou com a participação das seguintes pesquisadoras (em ordem
alfabética): Marina Melo, Patrícia Teixeira e Viviane Arena Figueiredo).
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