Se lermos a Advertência
que abre a coletânea de contos intitulada Papéis
Avulsos, publicada em 1882 pela Lombaerts, vamos encontrar referências a
Diderot, filósofo iluminista, e a São João, o evangelista, feitas pelo próprio
Machado de Assis. Contudo, se formos acompanhar os programas de muitos cursos
de Letras de nosso país, veremos que a literatura produzida num passado não tão
distante foi quase relegada ao esquecimento. E eis que é lançado, em 2013, pela
Civilização Brasileira, o livro de João Cezar de Castro Rocha que dá título à
esta postagem e que ganhou o Prêmio Ensaio/Crítica Literária, em 2014, da Academia Brasileira de Letras.
Nesse livro, o autor,
professor de Teoria da Literatura da UERJ, fala da importância de conhecermos poéticas
anteriores ao Romantismo para o entendimento da poética desenvolvida na segunda
fase da produção crítica e literária de um dos mais importantes autores da
Literatura em língua portuguesa. Seu nome: Joaquim Maria Machado de Assis. E não apenas sobre isso escreve João Cezar
nesse livro que vem despertar, acender, fomentar novas leituras da obra do
chamado bruxo do Cosme Velho e – não podemos deixar de dizer – vem incentivar
novos estudos que irão demandar leituras de obras que há muito não são
comumente lidas em nosso meio acadêmico tão preso ainda ao que nos chega das
nações ditas hegemônicas em termos econômicos e culturais, assim como também esse
livro de João Cezar vem demandar uma prática político-acadêmica que desenvolva
novas estratégias do fazer crítico (e literário, por que não?) nas
universidades brasileiras que não naturalizem o lugar que ocupamos hoje em
termos de receptores de teorias e de literaturas que nos chegam como se somente
daqueles centros pudessem chegar a nós. Sim, ainda olhamos para nós mesmos com
lentes que se querem parte das nações tidas por hegemônicas, mas tais lentes
nos são impostas e nós as retroalimentamos e as utilizamos como se fizessem
parte de nossos olhos que muitos de nós ainda ignoram serem latino-americanos.
Uma óptica interessante
– que faz toda a diferença – a respeito da relação da poética da emulação com a
recepção crítica do que nos vem de fora é o que diz João Cezar na página 336 do
referido livro:
A poética da emulação representa uma
resposta subjetiva a uma situação concreta de grande desequilíbrio nas relações
de poder cultural. Há o risco, contudo, de celebrar a assimetria, já que ela
favorece a emergência de um conjunto de procedimentos críticos, cujas
consequências são fundamentais no campo da arte e do pensamento.
Mas o que João Cezar
chama de Poética da Emulação?
A poética da emulação
seria uma prática de fazer literatura construída por meio da leitura crítica e
da imitatio de ícones da tradição
literária, com vistas ao pertencimento à essa tradição e à superação de modelos
literários, tidos como autoritas por
essa própria tradição e por quem detém as chaves ou chaves para o seu
entendimento. Ela, a poética da emulação, parte da leitura e da imitação de
reconhecidas – pela tradição – autoridades do fazer literário. Tal leitura
crítica e imitação são realizadas sob uma perspectiva que interroga e
corporifica o fazer literário a partir do uso de um anacronismo deliberado.
Em situações periféricas como a do Brasil da
segunda metade do século XIX e do Brasil de hoje, por exemplo – ou melhor dizendo:
em meios econômica e culturalmente periféricos – a poética da emulação vai
demandar uma leitura crítica da tradição literária dos meios hegemônicos, assim
como da literatura produzida em partes significativas de periferias do mundo.
Ou seja: a poética da emulação parte de um olhar que abarca o passado da
tradição literária hegemônica e da tradição do que foi construído e canonizado
pela periferia, assim como da leitura do que está sendo produzido nos meios
hegemônicos e nas periferias na época contemporânea ao autor que a pratica.
O livro de João Cezar mostra um Machado de
Assis leitor e escritor profundamente culto – no sentido de ser detentor de um
saber que o faz transitar pela tradição literária hegemônica – assim como um
Machado de Assis profundamente antenado com o que estava sendo construído e
divulgado – e o que foi construído e divulgado -, em termos de Literatura, no Brasil,
em Portugal e na América Latina.
Marcas do fazer
literário desse Machado – que há muito deixou para traz a prudência do
Machadinho de não escrever sobre assuntos e sob qualquer forma que pudessem ao
menos colocar a nu valores burgueses, pequeno-burgueses e ou que derivassem da
oligarquia detentora do poder no Brasil - podem ser encontradas, por exemplo, em Papéis
Avulsos, coletânea de contos preparada pelo próprio Machado de Assis, em
que vamos surpreender o diálogo com a América Latina, por exemplo, em um de
seus contos mais famosos: “O Alienista”.
Na primeira edição desse
conto, vinda a público nas páginas da Revista
Estação, lembra John Gledson, citando Raymundo Faoro, no Prefácio à edição
de Papéis Avulsos, publicada por
Peguin & Companhia das Letras, em 2011, pode ser que haja uma referência
velada às guerras de Independência da América Espanhola. [1]
Voltando ao ensaio de
João Cezar, ele dialoga, em muitas de suas passagens, com um número
considerável de contos, romances, poemas e crônicas da primeira e da segunda
fases da(s) literatura(s) produzida(s) por Machado – o que pode parecer
obrigatório aos que escrevem sobre a poética machadiana, mas, que,
infelizmente, não é - para, a partir desses textos literários e não-literários
de Machado de Assis, desenvolver uma leitura crítica sobre a poética do bruxo
do Cosme Velho, sem esquecer de textos lapidares da crítica literária produzida
ao longo do tempo, no Brasil e no exterior, sobre esse que é considerado, até
os dias de hoje, como o maior autor da literatura brasileira.
Outro ponto louvável do
ensaio de João Cezar é atualizar e contextualizar a singular importância e
força inovadora da literatura produzida por Eça de Queirós na segunda metade do
século XIX e como essa literatura – em especial, O Primo Basílio - muito provavelmente, influenciou a construção da segunda
fase da produção literária de Machado de Assis.
A respeito da literatura
de Eça de Queirós, até os dias de hoje, ela é considerada como um dos pontos
altos da literatura em língua portuguesa. Isso é ponto pacífico, tão pacífico
que atualmente tem a funcionalidade de um dogma de tão naturalizado que é. Contudo, sua força inovadora e política – o
Realismo/Naturalismo tem um viés fortemente político - vem sendo relegadas a um
segundo plano – e mesmo ao esquecimento - pela academia e não só por ela. Mas
eis que o ensaio de João Cezar desnaturaliza a força inovadora dessa literatura
e mesmo a atualiza e nos permite compreender o alcance dessa força inovadora e,
de, sem naturalizar, compreender sua grandeza.
Há muito ainda o que
dizer sobre o ensaio de João Cesar. Porém há a questão do espaço e do tamanho
que um texto como este costuma ter. Não podemos cansar o leitor. Mas não
podemos deixar de dizer que o ensaio de João Cezar também tem o mérito de
trazer à luz dos nossos dias o campo semântico da emulação na obra de Eça, de
Machado, de Camões, de Virgílio sem descuidar do estilo em que é escrito.
Podemos dizer que o ensaio de João Cezar também é habitado pela ironia e pelo
diálogo constante com o leitor que tanto encontramos na obra de Machado de
Assis e que ele, João Cezar, também visitou parte considerável da tradição
literária e da tradição crítico-literária hegemônicas e não-hegemônicas para
escrever a obra publicada em 2013.
Paramos por aqui sem
esquecer a promessa de João Cezar, contida no ensaio aqui tratado, de que ele
está preparando um novo livro em que pretende desenvolver o método apresentado
em Machado de Assis: por uma poética
da emulação. Essa obra que ainda não foi publicada já está em nossa lista de
leituras.
[1] GLEDSON,
John. Prefácio. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Papéis avulsos. São Paulo: Peguin Classics/Companhia das Letras,
2011, p. 20.
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