sábado, 31 de janeiro de 2015

Algumas palavras sobre Machado de Assis: por uma poética da emulação, ensaio de João Cezar de Castro Rocha





    Se lermos a Advertência que abre a coletânea de contos intitulada Papéis Avulsos, publicada em 1882 pela Lombaerts, vamos encontrar referências a Diderot, filósofo iluminista, e a São João, o evangelista, feitas pelo próprio Machado de Assis. Contudo, se formos acompanhar os programas de muitos cursos de Letras de nosso país, veremos que a literatura produzida num passado não tão distante foi quase relegada ao esquecimento. E eis que é lançado, em 2013, pela Civilização Brasileira, o livro de João Cezar de Castro Rocha que dá título à esta postagem e que ganhou o Prêmio Ensaio/Crítica Literária, em 2014, da Academia Brasileira de Letras.

  Nesse livro, o autor, professor de Teoria da Literatura da UERJ, fala da importância de conhecermos poéticas anteriores ao Romantismo para o entendimento da poética desenvolvida na segunda fase da produção crítica e literária de um dos mais importantes autores da Literatura em língua portuguesa. Seu nome: Joaquim Maria Machado de Assis.  E não apenas sobre isso escreve João Cezar nesse livro que vem despertar, acender, fomentar novas leituras da obra do chamado bruxo do Cosme Velho e – não podemos deixar de dizer – vem incentivar novos estudos que irão demandar leituras de obras que há muito não são comumente lidas em nosso meio acadêmico tão preso ainda ao que nos chega das nações ditas hegemônicas em termos econômicos e culturais, assim como também esse livro de João Cezar vem demandar uma prática político-acadêmica que desenvolva novas estratégias do fazer crítico (e literário, por que não?) nas universidades brasileiras que não naturalizem o lugar que ocupamos hoje em termos de receptores de teorias e de literaturas que nos chegam como se somente daqueles centros pudessem chegar a nós. Sim, ainda olhamos para nós mesmos com lentes que se querem parte das nações tidas por hegemônicas, mas tais lentes nos são impostas e nós as retroalimentamos e as utilizamos como se fizessem parte de nossos olhos que muitos de nós ainda ignoram serem latino-americanos.
    Uma óptica interessante – que faz toda a diferença – a respeito da relação da poética da emulação com a recepção crítica do que nos vem de fora é o que diz João Cezar na página 336 do referido livro:

               A poética da emulação representa uma resposta subjetiva a uma situação concreta de grande desequilíbrio nas relações de poder cultural. Há o risco, contudo, de celebrar a assimetria, já que ela favorece a emergência de um conjunto de procedimentos críticos, cujas consequências são fundamentais no campo da arte e do pensamento.

    Mas o que João Cezar chama de Poética da Emulação?
   A poética da emulação seria uma prática de fazer literatura construída por meio da leitura crítica e da imitatio de ícones da tradição literária, com vistas ao pertencimento à essa tradição e à superação de modelos literários, tidos como autoritas por essa própria tradição e por quem detém as chaves ou chaves para o seu entendimento. Ela, a poética da emulação, parte da leitura e da imitação de reconhecidas – pela tradição – autoridades do fazer literário. Tal leitura crítica e imitação são realizadas sob uma perspectiva que interroga e corporifica o fazer literário a partir do uso de um anacronismo deliberado.  
    Em situações periféricas como a do Brasil da segunda metade do século XIX e do Brasil de hoje, por exemplo – ou melhor dizendo: em meios econômica e culturalmente periféricos – a poética da emulação vai demandar uma leitura crítica da tradição literária dos meios hegemônicos, assim como da literatura produzida em partes significativas de periferias do mundo. Ou seja: a poética da emulação parte de um olhar que abarca o passado da tradição literária hegemônica e da tradição do que foi construído e canonizado pela periferia, assim como da leitura do que está sendo produzido nos meios hegemônicos e nas periferias na época contemporânea ao autor que a pratica.
   O livro de João Cezar mostra um Machado de Assis leitor e escritor profundamente culto – no sentido de ser detentor de um saber que o faz transitar pela tradição literária hegemônica – assim como um Machado de Assis profundamente antenado com o que estava sendo construído e divulgado – e o que foi construído e divulgado -, em termos de Literatura, no Brasil, em Portugal e na América Latina.       
  Marcas do fazer literário desse Machado – que há muito deixou para traz a prudência do Machadinho de não escrever sobre assuntos e sob qualquer forma que pudessem ao menos colocar a nu valores burgueses, pequeno-burgueses e ou que derivassem da oligarquia detentora do poder no Brasil - podem ser encontradas, por exemplo,  em Papéis Avulsos, coletânea de contos preparada pelo próprio Machado de Assis, em que vamos surpreender o diálogo com a América Latina, por exemplo, em um de seus contos mais famosos: “O Alienista”.
  Na primeira edição desse conto, vinda a público nas páginas da Revista Estação, lembra John Gledson, citando Raymundo Faoro, no Prefácio à edição de Papéis Avulsos, publicada por Peguin & Companhia das Letras, em 2011, pode ser que haja uma referência velada às guerras de Independência da América Espanhola. [1]  
   Voltando ao ensaio de João Cezar, ele dialoga, em muitas de suas passagens, com um número considerável de contos, romances, poemas e crônicas da primeira e da segunda fases da(s) literatura(s) produzida(s) por Machado – o que pode parecer obrigatório aos que escrevem sobre a poética machadiana, mas, que, infelizmente, não é - para, a partir desses textos literários e não-literários de Machado de Assis, desenvolver uma leitura crítica sobre a poética do bruxo do Cosme Velho, sem esquecer de textos lapidares da crítica literária produzida ao longo do tempo, no Brasil e no exterior, sobre esse que é considerado, até os dias de hoje, como o maior autor da literatura brasileira.
  Outro ponto louvável do ensaio de João Cezar é atualizar e contextualizar a singular importância e força inovadora da literatura produzida por Eça de Queirós na segunda metade do século XIX e como essa literatura – em especial, O Primo Basílio - muito provavelmente, influenciou a construção da segunda fase da produção literária de Machado de Assis.
   A respeito da literatura de Eça de Queirós, até os dias de hoje, ela é considerada como um dos pontos altos da literatura em língua portuguesa. Isso é ponto pacífico, tão pacífico que atualmente tem a funcionalidade de um dogma de tão naturalizado que é.  Contudo, sua força inovadora e política – o Realismo/Naturalismo tem um viés fortemente político - vem sendo relegadas a um segundo plano – e mesmo ao esquecimento - pela academia e não só por ela. Mas eis que o ensaio de João Cezar desnaturaliza a força inovadora dessa literatura e mesmo a atualiza e nos permite compreender o alcance dessa força inovadora e, de, sem naturalizar, compreender sua grandeza.
    Há muito ainda o que dizer sobre o ensaio de João Cesar. Porém há a questão do espaço e do tamanho que um texto como este costuma ter. Não podemos cansar o leitor. Mas não podemos deixar de dizer que o ensaio de João Cezar também tem o mérito de trazer à luz dos nossos dias o campo semântico da emulação na obra de Eça, de Machado, de Camões, de Virgílio sem descuidar do estilo em que é escrito. Podemos dizer que o ensaio de João Cezar também é habitado pela ironia e pelo diálogo constante com o leitor que tanto encontramos na obra de Machado de Assis e que ele, João Cezar, também visitou parte considerável da tradição literária e da tradição crítico-literária hegemônicas e não-hegemônicas para escrever a obra publicada em 2013.
     Paramos por aqui sem esquecer a promessa de João Cezar, contida no ensaio aqui tratado, de que ele está preparando um novo livro em que pretende desenvolver o método apresentado em Machado de Assis: por uma poética da emulação. Essa obra que ainda não foi publicada já está em nossa lista de leituras.      

 
                               
  
           

  







[1] GLEDSON, John. Prefácio. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Papéis avulsos. São Paulo: Peguin Classics/Companhia das Letras, 2011, p. 20.

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