domingo, 30 de outubro de 2016

Hoje é Primavera apesar de tudo e por causa de tudo o que vivemos e do que viveram antes de nós ou Discurso às minhas queridas alunas e aos meus queridos alunos da turma de Letras da UFF que se formou no dia 13 de outubro de 2016

     Estou retomando a escrita do blog com uma versão com pouquíssimas modificações do Discurso que fiz para as queridas alunas e para os queridos alunos da turma de Letras da UFF que se formou no dia 13 de outubro de 2016.  Tal discurso foi escrito com muita emoção, carinho e vontade de mudança e dialoga com o momento político que estamos vivendo hoje, sem deixar de falar em literatura e no ato revolucionário que é ser professor.


       “De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé: - muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri  tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre. A mais premente necessidade de um ser humano era torna-se um ser humano”.

Com este trecho de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, tinha início o convite de formatura da turma de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do primeiro semestre de 1988, ano em que, em outubro, foi promulgada a Constituição que recebeu o nome de Cidadã e caminhávamos com entusiasmo para a realização da primeira eleição direta para presidente do Brasil após o dia que durou 21 anos.
Tínhamos sede, fome, vontade, necessidade de democracia, a democracia tão essencial, tão fundamental como o ar que respiramos, não nos abandonava nem mesmo em nossos sonhos mais pessimistas. E havia pessimismo àquela altura? Creio que não ou se existia nem mesmo foi para as ruas para ver e ouvir o samba popular de Chico Buarque que arrastou multidões pelas ruas do Rio para saldar o início da Nova república e o fim da ditadura militar. Acreditávamos piamente que o Brasil ia ser transformado em um país de justiça social e democracia plena, onde as universidades estariam de portas abertas para os trabalhadores e para as trabalhadoras, além de que o Brasil de Brizola, Darcy Ribeiro, Cora Coralina, Carlos Drummond de Andrade, Carolina de Jesus, Lygia Fagundes Telles, Betinho, Henfil, Leila Diniz, Sobral Pinto, Ulisses Guimarães, Luiz Carlos Prestes e todos e todas que haviam também, ao longo da história, dado o melhor de si, até mesmo a própria vida, tecendo a manhã, como no poema de João Cabral de Melo Neto, para que chegássemos àquele momento em que o Brasil daria um passo que julgávamos definitivo em direção à construção da tão sonhada e amada democracia: nós, finalmente, votaríamos para presidente da república, após o fim da ditadura que, naquele tempo, não era comumente conhecida como ditadura civil-empresarial-militar.
Em 1988, eu estava entre aquelas jovens e aqueles jovens de olhos brilhantes da turma do primeiro semestre da Faculdade de Letras da UFRJ e, hoje, aqui com vocês, queridas alunas, queridos alunos, caras e caros colegas, senhores e senhoras aqui presentes – mães, pais, avós, tias e tios, irmãs e irmãos, esposas e maridos, namoradas e namorados, amigos e amigas das minhas queridas alunas e dos meus queridos alunos  - vejo que mesmo que a minha pele não tenha o mesmo viço de antes, meus olhos permanecem brilhantes.
Sim, eu sei. Nós sabemos. Vivemos tempos difíceis. Tempos em que a Constituição que nascia naquele portentoso e radiante, como um dia para sempre novo, outubro de 1988, está sendo dura e covardemente assassinada; em que toda a luta para termos o direito de votar foi vergolhosamente ultrajada e continuará a ser ultrajada dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, enquanto a presidência da república deste país estiver ocupada por um presidente ilegítimo. São tempos em que o conservadorismo, a misoginia, a homofobia, o racismo e o ódio aos mais pobres, próprios da cultura da casa grande, vão à praça e se espalham sem pudores em nosso país; em que a saúde e o ensino públicos, inclusive a universidade pública, estão seriamente ameaçados de morte pela PEC 241, aprovada recentemente em primeiro turno pelo Congresso Nacional que teima em esquecer que aquela casa é ou deveria ser a casa do povo; em que o Projeto da Escola sem Partido ameaça o pensamento crítico e o nosso futuro liberto e distante - muito distante – do da colônia de exploração a que determinados grupos nos querem atrelar e acorrentar ad aeternum. Se não bastassem tais pusilanimidades, uma reforma do ensino médio, aprovada por MP, entre outros atrocidades, retira a obrigatoriedade do ensino do espanhol do nosso país, atacando sorrateiramente o Mercosul, atacando sorrateiramente todo o nosso esforço de independência, que duramente construímos, em relação aos Estados Unidos, dando, essa reforma, às costas aos nossos irmãos e irmãs da América Latina, a América Latina que ainda permanece com as veias abertas, mas, seu sangue, que também é o nosso sangue, não correu e não corre em vão, alimentou e alimenta o sentimento de fraternidade crescente que se constrói em nós, brasileiras e brasileiros, hoje, inegavelmente não mais de costas para a América Latina, sabedores que somos de nossa latinoamericanidade.
      Sim, minhas queridas e meus queridos, apesar de todos os ataques, apesar  de vivermos hoje de forma inacreditavelmente temerária, estamos construindo um novo mundo. Estamos literalmente na primavera, uma tímida primavera, é verdade, mas que não deixa de ser primavera. Como diz a frase atribuída a Guevara: “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera inteira”.
       Hoje, 13 de outubro de 2016, dia mundial do escritor e quase véspera do dia do professor, é primavera, minhas amadas alunas e meus amados alunas, e o presente é onde a história, a vida e nós nos encontramos. O presente que, segundo tão bem escreveu Simone de Beauvoir, é o tempo da escolha e da ação. Neste outubro de 2016, há também rosas, flores,  sonhos,  resistência e luta, consubstanciadas, por exemplo, nos estudantes secundaristas que ocupam escolas e nos convidam a enxergar e a sentir que estamos vivos e que enquanto há vida há mudança e esperança; nas mídias alternativas que não silenciam os horrores cometidos contra a maioria de nós e divulgam e fomentam mobilizações populares; no acesso à universidade pública que cultiva o pensamento crítico e sonhos de um país inclusivo e democrático; na política de cotas, necessária enquanto sofrermos as consequências de anos e anos de escravidão e de exclusão.
           Aprender e ensinar são atos que combatem a exclusão, a solidão, as amarras da timidez e do individualismo exacerbados. São como um farol que é mantido – por quem ensina e por quem aprende – sempre acesso apesar das mudanças das marés e da ocorrência de tempestades, nos ajudando a não naufragarmos nas águas do preconceito e da intolerância. São atos de mão dupla (quem ensina aprende e quem aprende ensina, já dizia Paulo Freire) de esperança, de confiança, de solidariedade e de amor. Um intenso e caloroso diálogo entre gerações e como, no poema de Drummond, um convite para irmos de mãos dadas e a permanecermos sempre presentes, como um presente que a vida, nossos atos e nossas escolhas nos deram, nas palavras, nos atos, na memória daqueles que foram nossos alunos e nossos professores.
            Na área de Letras, temos contado direto e profundo com aquele que, segundo Antonio Candido, deveria estar entre os direitos fundamentais dos seres humanos: o de acesso à literatura. A literatura que nos permite ser mais humanos e a vivenciarmos experiências que uma vida sem ela não nos permitiria conhecer:  D. Quixote diante dos moinhos de vento; o gigante Adamastor; o amor da Maga e de Oliveira;, Simão Bacamarte e a discussão sobre a razão e a loucura; Isaías Caminha construindo recordações numa tentativa de perto do coração selvagem da vida, Joana e seu mergulho renovador no mar das palavras Alice e a descoberta do país das maravilhas; Jacinto e José Fernandes avistando uma Paris tomada pela injustiça social e pela neve; Hamlet, entre ser e  não-ser. Eis uma importante questão: ter acesso a todas essas histórias e muitas mais é participar de uma enorme roda de contadores de história, como na peça de Brecht, num grande elo entre seres humanos e tudo o que vive, em que também somos e seremos chamados a contarmos e a transmitirmos histórias – inclusive as nossas - e a fomentarmos o sonho, a vida, a fraternidade e a contribuirmos efetivamente para a formação de seres humanos mais humanos.
        Já dizia Cecília Meirelles: tem sangue eterno a asa ritmada e olhando para vocês, para os olhos brilhantes de cada um de vocês, posso dizer,  queridas alunas e queridos alunos, a partir de hoje, minhas queridas e meus queridos colegas, que cada um de vocês reforça em mim a esperança e a fé no presente e no futuro e agradeço muito a vocês por isto.
        Podem contar comigo para o que precisarem e lembrem-se, até mesmo nos momentos mais difíceis, que espero, de todo o coração, sejam poucos: 
      Ser professor é um ato revolucionário, transformador. Trabalhar com a palavra, com a literatura também é, além de ser libertador e extremamente prazeroso num  constante exercício de, como dizia Simone de Beauvoir, vivermos sem tempos mortos  
          Muito obrigada!


Um comentário:

  1. Um texto maravilhoso. Obrigada por compartilhá-lo, professora. Grande abraço, Katiane

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