“De Ulisses ela aprendera a ter coragem de
ter fé: - muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande
susto, pode significar cair no abismo, Lóri
tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses
enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve ela teria
que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de
se brincar porque em pleno dia se morre. A mais premente necessidade de um ser
humano era torna-se um ser humano”.
Com
este trecho de Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres, de Clarice Lispector, tinha início o convite de formatura
da turma de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do primeiro semestre
de 1988, ano em que, em outubro, foi promulgada a Constituição que recebeu o
nome de Cidadã e caminhávamos com entusiasmo para a realização da primeira eleição
direta para presidente do Brasil após o dia que durou 21 anos.
Tínhamos
sede, fome, vontade, necessidade de democracia, a democracia tão essencial, tão
fundamental como o ar que respiramos, não nos abandonava nem mesmo em nossos
sonhos mais pessimistas. E havia pessimismo àquela altura? Creio que não ou se
existia nem mesmo foi para as ruas para ver e ouvir o samba popular de Chico
Buarque que arrastou multidões pelas ruas do Rio para saldar o início da Nova
república e o fim da ditadura militar. Acreditávamos piamente que o Brasil ia
ser transformado em um país de justiça social e democracia plena, onde as
universidades estariam de portas abertas para os trabalhadores e para as
trabalhadoras, além de que o Brasil de Brizola, Darcy Ribeiro, Cora Coralina, Carlos
Drummond de Andrade, Carolina de Jesus, Lygia Fagundes Telles, Betinho, Henfil,
Leila Diniz, Sobral Pinto, Ulisses Guimarães, Luiz Carlos Prestes e todos e
todas que haviam também, ao longo da história, dado o melhor de si, até mesmo a
própria vida, tecendo a manhã, como no poema de João Cabral de Melo Neto, para
que chegássemos àquele momento em que o Brasil daria um passo que julgávamos
definitivo em direção à construção da tão sonhada e amada democracia: nós,
finalmente, votaríamos para presidente da república, após o fim da ditadura
que, naquele tempo, não era comumente conhecida como ditadura
civil-empresarial-militar.
Em
1988, eu estava entre aquelas jovens e aqueles jovens de olhos brilhantes da
turma do primeiro semestre da Faculdade de Letras da UFRJ e, hoje, aqui com
vocês, queridas alunas, queridos alunos, caras e caros colegas, senhores e
senhoras aqui presentes – mães, pais, avós, tias e tios, irmãs e irmãos,
esposas e maridos, namoradas e namorados, amigos e amigas das minhas queridas
alunas e dos meus queridos alunos - vejo
que mesmo que a minha pele não tenha o mesmo viço de antes, meus olhos
permanecem brilhantes.
Sim,
eu sei. Nós sabemos. Vivemos tempos difíceis. Tempos em que a Constituição que
nascia naquele portentoso e radiante, como um dia para sempre novo, outubro de
1988, está sendo dura e covardemente assassinada; em que toda a luta para
termos o direito de votar foi vergolhosamente ultrajada e continuará a ser
ultrajada dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, enquanto
a presidência da república deste país estiver ocupada por um presidente
ilegítimo. São tempos em que o conservadorismo, a misoginia, a homofobia, o
racismo e o ódio aos mais pobres, próprios da cultura da casa grande, vão à
praça e se espalham sem pudores em nosso país; em que a saúde e o ensino
públicos, inclusive a universidade pública, estão seriamente ameaçados de morte
pela PEC 241, aprovada recentemente em primeiro turno pelo Congresso Nacional
que teima em esquecer que aquela casa é ou deveria ser a casa do povo; em que o
Projeto da Escola sem Partido ameaça o pensamento crítico e o nosso futuro
liberto e distante - muito distante – do da colônia de exploração a que
determinados grupos nos querem atrelar e acorrentar ad aeternum. Se não bastassem tais pusilanimidades, uma reforma do
ensino médio, aprovada por MP, entre outros atrocidades, retira a
obrigatoriedade do ensino do espanhol do nosso país, atacando sorrateiramente o
Mercosul, atacando sorrateiramente todo o nosso esforço de independência, que
duramente construímos, em relação aos Estados Unidos, dando, essa reforma, às
costas aos nossos irmãos e irmãs da América Latina, a América Latina que ainda
permanece com as veias abertas, mas, seu sangue, que também é o nosso sangue,
não correu e não corre em vão, alimentou e alimenta o sentimento de fraternidade
crescente que se constrói em nós, brasileiras e brasileiros, hoje,
inegavelmente não mais de costas para a América Latina, sabedores que somos de
nossa latinoamericanidade.
Sim, minhas queridas e meus queridos,
apesar de todos os ataques, apesar de
vivermos hoje de forma inacreditavelmente temerária, estamos construindo um
novo mundo. Estamos literalmente na primavera, uma tímida primavera, é verdade,
mas que não deixa de ser primavera. Como diz a frase atribuída a Guevara: “Os
poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a
primavera inteira”.
Hoje, 13 de outubro de 2016, dia mundial
do escritor e quase véspera do dia do professor, é primavera, minhas amadas
alunas e meus amados alunas, e o presente é onde a história, a vida e nós nos
encontramos. O presente que, segundo tão bem escreveu Simone de Beauvoir, é o tempo
da escolha e da ação. Neste outubro de 2016, há também rosas, flores, sonhos, resistência e luta, consubstanciadas, por
exemplo, nos estudantes secundaristas que ocupam escolas e nos convidam a
enxergar e a sentir que estamos vivos e que enquanto há vida há mudança e
esperança; nas mídias alternativas que não silenciam os horrores cometidos
contra a maioria de nós e divulgam e fomentam mobilizações populares; no acesso
à universidade pública que cultiva o pensamento crítico e sonhos de um país
inclusivo e democrático; na política de cotas, necessária enquanto sofrermos as
consequências de anos e anos de escravidão e de exclusão.
Aprender e ensinar são atos que combatem
a exclusão, a solidão, as amarras da timidez e do individualismo exacerbados.
São como um farol que é mantido – por quem ensina e por quem aprende – sempre
acesso apesar das mudanças das marés e da ocorrência de tempestades, nos ajudando
a não naufragarmos nas águas do preconceito e da intolerância. São atos de mão
dupla (quem ensina aprende e quem aprende ensina, já dizia Paulo Freire) de esperança,
de confiança, de solidariedade e de amor. Um intenso e caloroso diálogo entre
gerações e como, no poema de Drummond, um convite para irmos de mãos dadas e a
permanecermos sempre presentes, como um presente que a vida, nossos atos e
nossas escolhas nos deram, nas palavras, nos atos, na memória daqueles que
foram nossos alunos e nossos professores.
Na área de Letras, temos contado
direto e profundo com aquele que, segundo Antonio Candido, deveria estar entre
os direitos fundamentais dos seres humanos: o de acesso à literatura. A
literatura que nos permite ser mais humanos e a vivenciarmos experiências que
uma vida sem ela não nos permitiria conhecer: D. Quixote diante dos moinhos de vento; o
gigante Adamastor; o amor da Maga e de Oliveira;, Simão Bacamarte e a discussão
sobre a razão e a loucura; Isaías Caminha construindo recordações numa
tentativa de perto do coração selvagem da vida, Joana e seu mergulho renovador
no mar das palavras Alice e a descoberta do país das maravilhas; Jacinto e José
Fernandes avistando uma Paris tomada pela injustiça social e pela neve; Hamlet,
entre ser e não-ser. Eis uma importante questão:
ter acesso a todas essas histórias e muitas mais é participar de uma enorme roda
de contadores de história, como na peça de Brecht, num grande elo entre seres
humanos e tudo o que vive, em que também somos e seremos chamados a contarmos e
a transmitirmos histórias – inclusive as nossas - e a fomentarmos o sonho, a
vida, a fraternidade e a contribuirmos efetivamente para a formação de seres
humanos mais humanos.
Já dizia Cecília Meirelles: tem sangue eterno
a asa ritmada e olhando para vocês, para os olhos brilhantes de cada um de
vocês, posso dizer, queridas alunas e
queridos alunos, a partir de hoje, minhas queridas e meus queridos colegas, que
cada um de vocês reforça em mim a esperança e a fé no presente e no futuro e
agradeço muito a vocês por isto.
Podem contar comigo para o que precisarem
e lembrem-se, até mesmo nos momentos mais difíceis, que espero, de todo o
coração, sejam poucos:
Ser professor é um ato revolucionário,
transformador. Trabalhar com a palavra, com a literatura também é, além de ser libertador
e extremamente prazeroso num constante exercício
de, como dizia Simone de Beauvoir, vivermos sem tempos mortos
Muito
obrigada!
Um texto maravilhoso. Obrigada por compartilhá-lo, professora. Grande abraço, Katiane
ResponderExcluir