Quem é esta que surge como a aurora, bela como a lua,
brilhante como o sol,terrível como um exército
em ordem de batalha?
brilhante como o sol,terrível como um exército
em ordem de batalha?
Cântico dos Cânticos
É preciso abrir as janelas. Escancarar as cortinas. Trazer o sol para dentro da casa. Deixar o calor de seus raios penetrar em todos os aposentos.
É preciso continuar. Continuar. Continuar. Continuar.
Arrumar a bagunça das crianças. Regar as plantas. Arrancar as folhas mortas da
violeta cor de violeta. Tirar a poeira dos móveis. Limpar o cinzeiro das cinzas
do cigarro de Albano.
As janelas estão abertas. É preciso mantê-las abertas.
O sol. Amarelo. Faz calor. Há papéis por todos os lados. Livros espalhados pelo
chão. Paredes recobertas pelos super-heróis de César e de Cícero. É preciso
lavar. Varrer. Passar pano no chão. (Por que Valdelice não veio? Por quê?) É
preciso preparar a aula de amanhã: "A literatura no tempo de Augusto".
(Ligo o rádio.) "Bom dia". Horácio.
Virgílio. Ovídio. Bom dia. (Dies aperitne ueritatem?). Faz sol.
Calor. (Um beija-flor acaba de beijar a flor lilás.) É preciso limpar o
espelho. A imagem destorcida no espelho. Os seios da loba (uma miniatura
comprada em Roma, durante um encontro de professores de literatura latina). A
mãe-loba e seus filhos, Rômulo e Remo. A mãe-loba e seus seios.
São nove horas da manhã. O relógio marca. (Meu rosto).
O espelho. O rosto no espelho. (Meu rosto). No quarto de dormir. A mulher
refletida no espelho. (Sou eu). Os seios. (Meu corpo). Eu, Eliana.
Professora-Mãe-Dona-de-casa-Amiga-Amante. Não me
reconheço. Como posso ter envelhecido tanto? Como posso ter deixado o tempo
passar sem me olhar no espelho, a vida conspurcada pelo tempo. Eu que amamentei
dois filhos e dei os seios a Albano para seu prazer. Não me pertenço. A vida
não me pertence (depois de tantos anos: um casamento; dois filhos; um Doutorado
em Roma; algumas publicações acadêmicas; um cargo de Professora Adjunta na
Federal) como posso sentir um enorme vazio, uma tristeza devastadora: A
SENSAÇÃO DE HAVER PERDIDO O BONDE DA MINHA HISTÓRIA.
Sim, devo estar louca. Devo andar meio desequilibrada.
Minhas mãos andam trêmulas e frias. Choro com facilidade. Depois de tantos
anos, tenho vontade de largar tudo (marido, filhos, vida acadêmica) e sair por
aí à procura de.
Como posso ter pensamentos tão mesquinhos, perversos?
Como posso ser tão má?
Devo pensar em outras coisas. Devo ocupar o tempo
livre: o ócio é inimigo dos bons pensamentos, das boas ações.
Procuro desesperadamente por um CD, uma música que
preencha o vazio do quarto, da sala, da casa inteira.
Jogo os CDs pelo chão. Um a um caem numa cascata de
plástico. As flores de plástico não morrem. As flores de plástico. Não. Nada
vai me trazer de volta a JUVENTUDE. A pele fresca. Lisa. O brilho nos olhos. A
vida desperdiçada em gestos mesquinhos: COTIDIANOS.
TENHO de começar a escrever o texto para a Semana de
Estudos Clássicos. Não há tempo de pensar em vontade, desejo, AUTENTICIDADE.
Mas o espelho, o rosto, a loba me perseguem. Por mais
que eu tente fugir, cobrir o espelho com um lençol: como quem cobre o corpo de
um morto.
Vejo o rosto no espelho. Meu rosto? O rosto daquela
que vive de tecer e desfiar tecidos imaginários, intermináveis, cíclicos: a
vida foge por entre meus dedos. Tenho medo. Medo.
O Medo invade meu coração. Sim. Vivo de sombras. Tenho
vertigens. Minhas mãos tateiam o vazio a procura de algo que as faça preencher
o quê?
Procuro um livro na estante. Procuro palavras que
tragam um pouco de ordem ao mundo caótico em que vivo. Fujo da dor. (Da
loucura?) Preciso resistir. Tenho dois filhos e um casamento. Dois filhos, um
casamento e uma carreira acadêmica.
Pego vários livros na estante. Virgílio, Horácio,
Ovídio, Tibulo, Propércio (Mas a imagem da loba amamentando Rômulo e Remo me
persegue. Não consigo deixar de pensar nela. Por mais que...) Meu Deus, me
ajude! Procuro desesperadamente por um livro. Palavras que me ajudem a pensar.
No princípio era. O livro. Mas, tenho sono. Deito no sofá e adormeço.
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