segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Início de A Mulher do Dia, romance publicado em 2011, ganhador do Prêmio Clarice Lispector da Diretoria da UBE-RJ

                                      
                                      Quem é esta que surge como a aurora, bela como a lua,
                                                    brilhante como o sol,terrível como um exército
                                                                                           em ordem de batalha?
                                                                                         
                                                               Cântico dos Cânticos






            É preciso abrir as janelas. Escancarar as cortinas. Trazer o sol para dentro da casa. Deixar o calor de seus raios penetrar em todos os aposentos.

É preciso continuar. Continuar. Continuar. Continuar. Arrumar a bagunça das crianças. Regar as plantas. Arrancar as folhas mortas da violeta cor de violeta. Tirar a poeira dos móveis. Limpar o cinzeiro das cinzas do cigarro de Albano.

As janelas estão abertas. É preciso mantê-las abertas. O sol. Amarelo. Faz calor. Há papéis por todos os lados. Livros espalhados pelo chão. Paredes recobertas pelos super-heróis de César e de Cícero. É preciso lavar. Varrer. Passar pano no chão. (Por que Valdelice não veio? Por quê?) É preciso preparar a aula de amanhã: "A literatura no tempo de Augusto".

(Ligo o rádio.) "Bom dia". Horácio. Virgílio. Ovídio. Bom dia. (Dies aperitne ueritatem?). Faz sol. Calor. (Um beija-flor acaba de beijar a flor lilás.) É preciso limpar o espelho. A imagem destorcida no espelho. Os seios da loba (uma miniatura comprada em Roma, durante um encontro de professores de literatura latina). A mãe-loba e seus filhos, Rômulo e Remo. A mãe-loba e seus seios.

São nove horas da manhã. O relógio marca. (Meu rosto). O espelho. O rosto no espelho. (Meu rosto). No quarto de dormir. A mulher refletida no espelho. (Sou eu). Os seios. (Meu corpo). Eu, Eliana.

Professora-Mãe-Dona-de-casa-Amiga-Amante. Não me reconheço. Como posso ter envelhecido tanto? Como posso ter deixado o tempo passar sem me olhar no espelho, a vida conspurcada pelo tempo. Eu que amamentei dois filhos e dei os seios a Albano para seu prazer. Não me pertenço. A vida não me pertence (depois de tantos anos: um casamento; dois filhos; um Doutorado em Roma; algumas publicações acadêmicas; um cargo de Professora Adjunta na Federal) como posso sentir um enorme vazio, uma tristeza devastadora: A SENSAÇÃO DE HAVER PERDIDO O BONDE DA MINHA HISTÓRIA.

Sim, devo estar louca. Devo andar meio desequilibrada. Minhas mãos andam trêmulas e frias. Choro com facilidade. Depois de tantos anos, tenho vontade de largar tudo (marido, filhos, vida acadêmica) e sair por aí à procura de.

Como posso ter pensamentos tão mesquinhos, perversos? Como posso ser tão má?

Devo pensar em outras coisas. Devo ocupar o tempo livre: o ócio é inimigo dos bons pensamentos, das boas ações.

Procuro desesperadamente por um CD, uma música que preencha o vazio do quarto, da sala, da casa inteira.

Jogo os CDs pelo chão. Um a um caem numa cascata de plástico. As flores de plástico não morrem. As flores de plástico. Não. Nada vai me trazer de volta a JUVENTUDE. A pele fresca. Lisa. O brilho nos olhos. A vida desperdiçada em gestos mesquinhos: COTIDIANOS.

TENHO de começar a escrever o texto para a Semana de Estudos Clássicos. Não há tempo de pensar em vontade, desejo, AUTENTICIDADE.

Mas o espelho, o rosto, a loba me perseguem. Por mais que eu tente fugir, cobrir o espelho com um lençol: como quem cobre o corpo de um morto.

Vejo o rosto no espelho. Meu rosto? O rosto daquela que vive de tecer e desfiar tecidos imaginários, intermináveis, cíclicos: a vida foge por entre meus dedos. Tenho medo. Medo.

O Medo invade meu coração. Sim. Vivo de sombras. Tenho vertigens. Minhas mãos tateiam o vazio a procura de algo que as faça preencher o quê?

Procuro um livro na estante. Procuro palavras que tragam um pouco de ordem ao mundo caótico em que vivo. Fujo da dor. (Da loucura?) Preciso resistir. Tenho dois filhos e um casamento. Dois filhos, um casamento e uma carreira acadêmica.

Pego vários livros na estante. Virgílio, Horácio, Ovídio, Tibulo, Propércio (Mas a imagem da loba amamentando Rômulo e Remo me persegue. Não consigo deixar de pensar nela. Por mais que...) Meu Deus, me ajude! Procuro desesperadamente por um livro. Palavras que me ajudem a pensar. No princípio era. O livro. Mas, tenho sono. Deito no sofá e adormeço.


 

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