Faz tempo – década de 80 – fui apresentada por uma grande amiga, hoje,
professora da UERJ, ao livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir.
Lembro-me de que fiquei muito impactada com aquelas páginas, apesar dos
quase quarenta anos que nos separavam. Ora, O Segundo Sexo (volume I) fora publicado,
pela primeira vez, em 1949, na França, pela Gallimard, mas ainda naqueles dias
– e acredito que também hoje - sua leitura é transformadora até mesmo para os
que o criticam pejorativamente.
A corajosa verbalização do papel
relegado pela sociedade à mulher como o Outro, papel esse assumido por muitas
de nós até a atualidade, pelo menos em alguma fase de nossas vidas, tem entre
os efeitos que promove o de provocar estranhamento e reconhecimento em suas
leitoras que, mesmo não assumindo a responsabilidade de suas vidas, não se viam
como Objeto. Eram alienadas de sua própria condição, mas, por meio da leitura
daquele livro, reconheciam e repugnavam sua maneira de ser no mundo.
A emblemática frase, “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, dá a medida
do tom polêmico atingido pela escritora e filósofa francesa. Mas esse tom era
necessário para acordar toda uma sociedade que – de certo modo – levada às
mulheres ao sacrifício da renúncia de suas potenciais personalidades que nem
sequer chegavam a desenvolver. Eram cotidianamente relegadas a uma espécie de Eterna
Infância. E, segundo o Existencialismo, somos aquilo que fazemos. Ou seja, não
nascemos prontos. Vamos construindo nossas personalidades à medida que vivemos,
escolhemos, agimos, fazemos. Não escolher, não agir, não fazer também são
escolhas (será que são mesmo?) que, muitas vezes, desperdiçam vidas e tornam um grupo de pessoas continuamente
subjugado.
A leitura de O Segundo Sexo me
faz lembrar também de uma frase de Clarice Lispector, frase essa presente em Uma Aprendizagem Ou O Livro Dos Prazeres:
“A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano”.
Sim, o ser humano como ser humano. Sujeito de sua própria história. Tal atitude,
ser Sujeito, muda nossas vidas individuais e mesmo a humanidade.
Simone de Beauvoir, naquele livro publicado pela primeira vez em 1949,
nos mostra a condição das mulheres como Objeto e nos convida a sermos Sujeito
de nossa própria história e, para nosso espanto, a grande importância que teve
para uma das principais mudanças que ocorreram no mundo, a das mulheres como
Sujeito, não a coloca entre os principais intelectuais da História da Humanidade.
Será por que até hoje as mulheres não são, em seu conjunto, encaradas como Sujeito?
Ou será que os assuntos que as envolvem não são tratados como sendo da maior relevância,
pois, até hoje, o universal é tido como masculino? Em que medida tal estado de
coisas é sustentado por nossas escolhas, ações (e até mesmo usos linguísticos)?
A obra de Simone de Beauvoir nos faz pensar e questionar a nossa maneira
de existir e os costumes da sociedade em que vivemos.
Sua obra escrita é constituída por romances, memórias, ensaios e correspondências.
Digo obra escrita, pois considero que atitudes – num sentido que não a de
escrever - são também obras que modificam formas de estar e de ser neste
planeta Terra. E as memórias de Simone de Beauvoir nos trazem formas de ser e
de estar (em muitos sentidos) avant la
lettre até mesmo para os dias de hoje. Também, para quem estuda Crítica Textual e
Crítica Genética, suas memórias são fontes de informações sobre a construção de
seus romances e ensaios e isso, em termos de Estudos Literários e Culturais, é
muito atual.
É preciso – e mesmo necessário – ler Simone de Beauvoir nestes tempos
ainda tristemente dominados pelo mercado, pela hipocrisia, por papéis
previamente atribuídos a homens e a mulheres. E eu pergunto a vocês, leitoras e
leitores, onde começam e onde terminam a nossa liberdade e a nossa
responsabilidade?
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