domingo, 4 de fevereiro de 2018

A propósito de “Caravanas” ou salve, Chico Buarque, por nos brindar com poesia, mas também por nos fazer ver o óbvio

           Tive a oportunidade - e por que não dizer ? - a felicidade de assistir ao show de Chico Buarque, em 26 de janeiro, no Rio, no mesmo dia em que Angela Davis completou mais um ano de vida, e, coincidentemente, na mesma semana em que participei de uma banca de Mestrado, no Instituto de Letras da UERJ, a convite da Professora Ana Cristina Santos, sobre o romance O irmão alemão, do próprio Chico Buarque.[1] Parece até uma sincronicidade, no sentido de Jung, e talvez seja mesmo. É preciso também dizer que neste dia 26/01, ao final do espetáculo, o nome do ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva foi ovacionado pela quase totalidade do público que lá estava.
          “Caravanas”, título do show e do novo álbum de Chico Buarque, é obra de um artífice da palavra e da melodia que, acompanhado da banda e do conjunto de pessoas que torna o show e o álbum possíveis, nos proporciona uma viagem a um espaço/tempo de grande beleza e de resgate de vivência de sons, de gestos, de histórias de liberdade e de libertação e de uma MPB de extrema qualidade, que nos faz lembrar que não foi em vão tudo o que foi construído em termos de lutas por cidadania, por democracia, por direitos sociais, por uma educação de qualidade para todos e todas.
            Naquele palco, que preserva algo de mágico, como a maior parte dos palcos, mas que também revela uma face muito familiar, a figura de Chico Buarque em pessoa, iluminada por luzes que desenham cenários de vários feitios e cores, além da presença de uma hélice que parece lembrar um cruzeiro do sul (talvez uma homenagem aos nossos irmãos e irmãs da América Latina presentes em forma de canções àquele espetáculo)  está a grande poesia dos menestréis, dos cantadores, dos poetas, dos escritores de vários tempos e estratos da nossa língua e de línguas que nos são também próximas.
         Naquele palco, se encontra o que seguramente é parte do que de melhor se produz e se produziu do que orgulhosamente chamamos de Música Popular Brasileira.
         E o Rio está presente nas letras que ecoam naquele cenário.
     “Onde o chão acaba e principia toda a arrebentação?”, pergunta uma das belas canções de “Caravanas”. Certamente também onde podemos encontrar histórias de resistência e de construção de nossa identidade que não cabem na foto que as elites tão mesquinhas querem nos impingir e fazer com que acreditemos que fora do seu enquadramento não há possibilidade de vida digna nem de aposentadoria sqn.
         Curiosamente, a palavra caravana, segundo o Dicio, dicionário online, “vem do persa e significa povo ou exército”.[2] E o show de Chico parece também dialogar com esses sentidos ao fazer uma homenagem à periferia ou ao colocar, no centro naquele palco, na entrada da zona sul, a zona norte, os chamados suburbanos, o “malandro que chacoalha no trem da Central” e os desfavorecidos de uma política desenvolvida por uma burguesia ciosa em se manter a todo o custo no poder mesmo cultivando e alimentando as engrenagens do subdesenvolvimento ad aeternum. Além disso, “Caravanas” também dialoga com outros shows e álbuns de Chico Buarque e tal diálogo é consubstanciado com a presença de canções como “Vitrines”, “Palavra de Mulher”, “Geni”, “Retrato em Branco e Preto”, “Sabiá” que, a maior parte delas, de uma forma ou de outra, dão voz a minorias, a excluídos, a exilados e nos remetem, algumas delas, aos festivais e à forte lembrança de uma época marcada por um outro golpe, o militar-civil-empresarial de 1964, mas também uma época em que foi construída uma forte luta contra a ditadura, luta essa de que não se eximiu o grande compositor carioca.
      “Caravanas” nos faz ainda lembrar da virtuosidade de um Machado de Assis que em “O Alienista”, por exemplo, não se furta de promover, para usarmos uma palavra de hoje, o empoderamento de pessoas e de culturas excluídas (Lembrei-me também de Lima Barreto, de Walter Benjamin, de Brecht e de tantos e tantos autores que dialogam com a riquíssima obra de Chico Buarque, um artista brasileiro e do mundo).
       Tem razão Flávia Oliveira, citada pela querida Ana Virgínia Pinheiro, a supercompetente chefe do setor de Obras Raras da Biblioteca Nacional (RJ), numa postagem no Face: “Na cultura, a resistência”. Sim, nos temerosos e esdrúxulos e revoltantes dias que se sucederam e que se sucedem ao golpe, a cultura não deixou de promover resistência, assim como muitos movimentos sociais e sindicados, por exemplo, que não deixaram de promover resistência inclusive à tentativa de acelerada destruição de tantos e tamanhos sonhos e atos de construção de um Brasil verdadeiramente democrático, igualitário em que não há lugar para oligarquia, racismo, misoginia, lgbtfobia, meritocracia e tudo o mais que atrela o país ao atraso, à desumanização, ao desrespeito à vida que tornam pesados os dias de hoje, mas ainda há grandes e corajosos artistas como Chico Buarque que insistem em nos lembrar que temos uma grande tradição que se mantém viva e ativa, hoje, uma tradição de busca de liberdade, de beleza da nossa língua, da nossa música, de luta pelos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores, enfim, de nossa dignidade de viver. Só lamento que os ingressos sejam tão caros, o que restringe muito o público que pode assistir a (e participar d)esse grande e fundamental espetáculo que é “Caravanas”.


        



[1]  Título da dissertação: O pacto ambíguo em O irmão alemão: uma autoficção de Chico Buarque. Autoria: Jhonatan Rodrigues Peixoto da Silva.Orientadora: Professora Ana Cristina Santos. Participou também da banca a Professora Anna Faedrich que tem importantes trabalhos sobre Autoficção.

[2] www.dicio.com.br (Acesso em 03/02/2018).

Foto tirada por Susana Ferreira. 

2 comentários:

  1. A arte como resistência e empoderamento é uma necessidade nesses tempos tão complicados. Chico sempre se renovando e nos renovando.Parabéns pelo excelente texto, Ceila. Bjs

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