Tive a
oportunidade - e por que não dizer ? - a felicidade de assistir ao show de
Chico Buarque, em 26 de janeiro, no Rio, no mesmo dia em que Angela Davis
completou mais um ano de vida, e, coincidentemente, na mesma semana em que
participei de uma banca de Mestrado, no Instituto de Letras da UERJ, a convite
da Professora Ana Cristina Santos, sobre o romance O irmão alemão, do próprio Chico Buarque.[1]
Parece até uma sincronicidade, no sentido de Jung, e talvez seja mesmo. É
preciso também dizer que neste dia 26/01, ao final do espetáculo, o nome do ex-Presidente
da República Luiz Inácio Lula da Silva foi ovacionado pela quase totalidade do
público que lá estava.
“Caravanas”, título do show e do novo
álbum de Chico Buarque, é obra de um artífice da palavra e da melodia que,
acompanhado da banda e do conjunto de pessoas que torna o show e o álbum
possíveis, nos proporciona uma viagem a um espaço/tempo de grande beleza e de resgate
de vivência de sons, de gestos, de histórias de liberdade e de libertação e de
uma MPB de extrema qualidade, que nos faz lembrar que não foi em vão tudo o que
foi construído em termos de lutas por cidadania, por democracia, por direitos
sociais, por uma educação de qualidade para todos e todas.
Naquele palco, que preserva algo de
mágico, como a maior parte dos palcos, mas que também revela uma face muito
familiar, a figura de Chico Buarque em pessoa, iluminada por luzes que desenham
cenários de vários feitios e cores, além da presença de uma hélice que parece
lembrar um cruzeiro do sul (talvez uma homenagem aos nossos irmãos e irmãs da
América Latina presentes em forma de canções àquele espetáculo) está a grande poesia dos menestréis, dos
cantadores, dos poetas, dos escritores de vários tempos e estratos da nossa
língua e de línguas que nos são também próximas.
Naquele palco, se encontra o que
seguramente é parte do que de melhor se produz e se produziu do que
orgulhosamente chamamos de Música Popular Brasileira.
E o Rio está presente nas letras que ecoam
naquele cenário.
“Onde o chão acaba e principia toda a
arrebentação?”, pergunta uma das belas canções de “Caravanas”. Certamente também
onde podemos encontrar histórias de resistência e de construção de nossa
identidade que não cabem na foto que as elites tão mesquinhas querem nos
impingir e fazer com que acreditemos que fora do seu enquadramento não há
possibilidade de vida digna nem de aposentadoria sqn.
Curiosamente, a palavra caravana, segundo o Dicio, dicionário online, “vem do persa
e significa povo ou exército”.[2]
E o show de Chico parece também dialogar com esses sentidos ao fazer uma
homenagem à periferia ou ao colocar, no centro naquele palco, na entrada da
zona sul, a zona norte, os chamados suburbanos, o “malandro que chacoalha no
trem da Central” e os desfavorecidos de uma política desenvolvida por uma
burguesia ciosa em se manter a todo o custo no poder mesmo cultivando e
alimentando as engrenagens do subdesenvolvimento ad aeternum. Além disso, “Caravanas” também dialoga com outros
shows e álbuns de Chico Buarque e tal diálogo é consubstanciado com a presença
de canções como “Vitrines”, “Palavra de Mulher”, “Geni”, “Retrato em Branco e
Preto”, “Sabiá” que, a maior parte delas, de uma forma ou de outra, dão voz a
minorias, a excluídos, a exilados e nos remetem, algumas delas, aos festivais e
à forte lembrança de uma época marcada por um outro golpe, o
militar-civil-empresarial de 1964, mas também uma época em que foi construída
uma forte luta contra a ditadura, luta essa de que não se eximiu o grande
compositor carioca.
“Caravanas” nos faz ainda lembrar da
virtuosidade de um Machado de Assis que em “O Alienista”, por exemplo, não se
furta de promover, para usarmos uma palavra de hoje, o empoderamento de pessoas
e de culturas excluídas (Lembrei-me também de Lima Barreto, de Walter Benjamin,
de Brecht e de tantos e tantos autores que dialogam com a riquíssima obra de
Chico Buarque, um artista brasileiro e do mundo).
Tem razão Flávia Oliveira, citada pela
querida Ana Virgínia Pinheiro, a supercompetente chefe do setor de Obras Raras
da Biblioteca Nacional (RJ), numa postagem no Face: “Na cultura, a
resistência”. Sim, nos temerosos e esdrúxulos e revoltantes dias que se
sucederam e que se sucedem ao golpe, a cultura não deixou de promover
resistência, assim como muitos movimentos sociais e sindicados, por exemplo,
que não deixaram de promover resistência inclusive à tentativa de acelerada
destruição de tantos e tamanhos sonhos e atos de construção de um Brasil
verdadeiramente democrático, igualitário em que não há lugar para oligarquia,
racismo, misoginia, lgbtfobia, meritocracia e tudo o mais que atrela o país ao
atraso, à desumanização, ao desrespeito à vida que tornam pesados os dias de
hoje, mas ainda há grandes e corajosos artistas como Chico Buarque que insistem
em nos lembrar que temos uma grande tradição que se mantém viva e ativa, hoje,
uma tradição de busca de liberdade, de beleza da nossa língua, da nossa música,
de luta pelos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores, enfim, de nossa
dignidade de viver. Só lamento que os ingressos sejam tão caros, o que
restringe muito o público que pode assistir a (e participar d)esse grande e
fundamental espetáculo que é “Caravanas”.
[1] Título da dissertação: O
pacto ambíguo em O irmão alemão: uma
autoficção de Chico Buarque. Autoria: Jhonatan Rodrigues Peixoto da Silva.Orientadora: Professora Ana Cristina Santos. Participou também da banca a Professora Anna Faedrich que tem importantes
trabalhos sobre Autoficção.
A arte como resistência e empoderamento é uma necessidade nesses tempos tão complicados. Chico sempre se renovando e nos renovando.Parabéns pelo excelente texto, Ceila. Bjs
ResponderExcluirMuito obrigada, Ana Cristina! Bjs
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